JOSÉ FIGUEIREDO

A culpa dos economistas

Todas as elites são responsáveis pelo ascenso dos populismos, todos temos culpa: os intelectuais, os políticos, os dirigentes corporativos, os media etc..
Mas, como aqui é o cantinho da economia, é da culpa dos economistas, enquanto classe profissional, que gostaria de falar um pouco.
Os economistas talvez devam ter a consciência pesada. Embora a lista dos nossos pecados seja longa vou aqui tratar de apenas dois que me parecem os mais óbvios e não necessariamente os menos graves. Ao primeiro chamaria a arrogância da falsa precisão, ao segundo daria o nome de indesejável banimento da moralidade.
Na verdade os economistas e a economia têm hoje uma influência na sociedade e na formulação de políticas públicas bem acima do que os méritos intrínsecos da ciência recomendariam.
A economia (como a generalidade do conhecimento humano) nasceu dentro da filosofia. Ainda no século XVIII, David Hume, um dos mais influentes pensadores iluministas, discorria sobre temas económicos como se fossem apenas mais um aspeto do seu filosofar. David Hume, provavelmente sem o saber, formulou o que pode ter sido o primeiro modelo económico moderno, discorrendo à moda dos filósofos e, naturalmente, sem recorrer a uma única fórmula matemática.
Para muitos, Adam Smith, contemporâneo (e amigo) de David Hume terá sido o primeiro economista, o que quer dizer o primeiro filósofo a dedicar-se exclusivamente ao pensamento sobre temas da produção e distribuição do rendimento e da riqueza. Só a partir de Adam Smith a economia ganhou o estatuto de uma disciplina razoavelmente autónoma.
Mas por essa altura as estatísticas eram ainda muito escassas, geralmente tardias e flagrantemente imprecisas. Benjamim Disraeli, um dos grandes líderes políticos da era Vitoriana, costumava dizer que havia 3 tipos de mentiras: as mentiras, as malditas mentiras e as estatísticas. A economia era ainda uma ciência essencialmente discursiva.
A melhoria dos aparatos estatísticos, o nascimento da macroeconomia moderna, o progresso das matemáticas e as novas tecnologias de informação e computação levaram a economia para uma crescente formalização quantitativa, quase emulando as chamadas ciências exatas.
Esta ilusão de rigor e o endeusamento das métricas conduziu-nos ao pecado da hubris. Para os antigos gregos a hubris era uma mistura de orgulho e de arrogância que levava à perda dos heróis das suas tragédias. A nossa hubris, a dos economistas, resultou de uma falsa sensação de superioridade em relação às restantes ciências sociais (menos exatas) ao ponto de termos criado para nós próprios a ilusão de que conseguíamos “modelizar” as comunidades humanas e, com isso, “prever” o futuro.
O pior de tudo é que fomos particularmente bem-sucedidos a vender ao resto da comunidade a nossa suposta presciência. A verdade é que nem mesmo os mais clamorosos falhanços parecem poder abalar a crença. Nem um só economista previu a crise de 2008/2009. Mesmo em 2008, com tudo a arder à volta, não conheço um único economista de renome que tenha antecipado a recessão de 2009.
Por vezes ocorre-me que fazemos hoje o papel dos feiticeiros nas tribos primevas. A ansiedade de antecipar o futuro é tal que continuamos a consultar o feiticeiro mesmo sabendo que no passado falhou em mais ou menos 50% das tentativas
Banir a moral foi o segundo dos pecados maiores. Num texto anterior tentei demonstrar como a suposta neutralidade moral dos mercados é uma fábula. A forma como os economistas lidam com o tema da globalização parece-me, nesta matéria, exemplar.
Os economistas sempre pensaram a globalização como uma coisa intrinsecamente boa.
No fundo sabíamos que apesar da perda de uns quantos empregos nas economias desenvolvidas, a globalização seria sempre um jogo de soma positiva. Nos países pobres as pessoas ficariam claramente melhor e nos países ricos, mesmo os que perdessem o emprego, acabariam por encontrar novas ocupações. Como o PIB cresceria, a riqueza total cresceria e todos deveríamos ficar um pouco melhor.
Que falta faz aqui o pensamento moral? Afinal não ganhamos todos? Não é um mundo mais globalizado um mundo potencialmente mais pacífico?
Talvez seja! O problema é que nos países desenvolvidos a globalização trouxe coisas indesejáveis mesmo para uma economia a crescer.
Uma dessas coisas é o aumento galopante da desigualdade. Os benefícios da globalização, enquanto crescimento do rendimento e da riqueza existem, são inegáveis – o problema é que estão concentrados numa elite sócio económica e sócio profissional cada vez mais restrita. Por vezes também estão concentrados nas grandes cidades onde ficam as sedes dos bancos ou das multinacionais.
Vejamos o caso dos operários industriais que perderam os empregos em processos de deslocalização.
Provavelmente muitos deles sobreviveram à custa de ajudas públicas ou então procuraram trabalho na área dos serviços. É até possível que nalguns casos não tenha havido perda material significativa. Mas isso é tudo?
Ter um emprego não é só entrar às nove e sair às seis. Também é pertencer a uma comunidade, a um grupo com o qual partilhamos uma boa parte das nossas vidas. Ter um emprego também é beber uma cerveja com os camaradas ao fim da tarde depois do trabalho, jogar futebol no clube da empresa ou no grupo informal que criamos entre colegas de trabalho, participar na bisbilhotice local…
Quando tudo isso desaparece o sentimento de perda é forte. Para os modelos dos economistas tudo isso não passa de ruído, uns quantos danos colaterais num mundo em progresso geral.
A reação das elites ao ascenso dos populismos tem sido globalmente errada. A abordagem “nós ou o dilúvio” não só não tem conseguido atemorizar as massas que votaram Brexit ou Trump, como por outro lado, correm o risco de cair no maior descrédito.
As elites previam o fim do mundo em ceroulas se o referendo no Reino Unido desse Brexit. Seguir-se-ia uma recessão brutal, desemprego galopante, os preços das casas cairiam a pique, etc.
Contudo, já passou mais de meio ano de não há sinais visíveis de catástrofe. Pelo contrário a economia do Reino Unido continua a ser uma das mais dinâmicas da Europa em 2016.
Nos Estados Unidos a coisa foi um pouco mais contida (já se conhecia alguma informação do pós Brexit) mas a arma do medo foi abundantemente utilizada pelas elites com os resultados que conhecemos.
Se as elites persistirem neste caminho perderão com certeza em muitas outras geografias – as massas já não compram o argumento do medo.
Precisamos todos, mas em particular os economistas, de um banho de humildade. Devemos reconhecer que não conseguimos prever coisa nenhuma, que as comunidades humanas são demasiado complexas para caber mesmo no mais elaborado e mais sofisticado dos modelos e, acima de tudo, que não temos o direito de banir a moral das nossas preocupações.
Os populismos vão falhar porque estão errados mas não podemos excluir que até possam apresentar bons resultados no curto prazo. Se os queremos derrotar não será brandindo a arma do medo. A solução passa por sociedades mais inclusivas, menos divididas entre ter e não ter, com os benefícios do crescimento melhor distribuídos entre as grandes cidades e o resto do território. Nem sequer é, em teoria, complicado.
A já agora lembrar que a mão invisível de Adam Smith até anda por aí e, em geral, funciona. O problema é que aqui e ali manifesta uns começos de artrose que necessitamos de remediar. E para isso não passamos sem julgamentos morais!

 

Data de introdução: 2017-02-09



















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