Após atravessar a desoladora paisagem enegrecida de Pedrógão Grande chegamos a Nodeirinho, onde encontramos Isabel, 53 anos, também ela toda de negro vestida e de «triste vida» na mão a caminho do terreno onde momentos antes havia estado a apanhar batatas. O terreno e as batatas salvaram-se, apesar de totalmente cercados pelo fogo. «Triste vida» é o nome dado ao carrinho de mão na vizinha Miranda do Corvo e a designação mais correta para o momento que Isabel vive depois do fogo assassínio que lhe entrou porta adentro. Um pouco mais acima surge Florinda, quase 90 anos, caminhando lentamente agarrada a um enxada e carregando um molho de erva “para os coelhos”.
Florinda e Isabel são mãe e filha e estão de luto. O fogo cruel levou um filho e um neto à primeira, irmão e filho da segunda. “Tinha apenas 21 anos”, lamenta, em lágrimas, a mãe Isabel, que apesar de tudo não vira a cara à vida. “A gente mata-se a trabalhar, ele quis salvar as máquinas, que era o trabalho dele, para quê? Temos é que viver um dia de cada vez!”.
Foi em Nodeirinho que a população se refugiou no tanque da aldeia e assim sobreviveu ao incêndio, já o filho de Isabel quis ir a um outro terreno salvar as máquinas e não mais voltou.
O cenário na região é completamente desolador. Uma semana depois de o incêndio ter sido dado como extinto, o cheiro a queimado enche o ar, o cheiro a terra queimada é intenso, há fuligem por todo o lado, as árvores, muitos eucaliptos e também pinheiros, estão vergados! Alguns estão partidos, mas muitos foram vergados pela intensidade do calor e pela força do vento.
“Isto parecia um tornado”, atira Manuel Cunha, 83 anos, morador em Pobrais, outra das aldeias castigadas com mortes, enquanto Stan Mitchell, um inglês há quatro anos a morar em Vila Facaia, assegura que eram “ventos ciclónicos”.
“Os políticos só querem saber quem é o culpado, mas isto era um vento forte que não se podia. De princípio havia ali um fogo ao longe em Castanheira e, de repente, tomou isto tudo aqui à volta”, sustenta Manuel Cunha, que juntamente com a mulher esteve até de madrugada “com baldinhos” a evitar que a casa fosse afetada.
Em Pobrais, para além de várias pessoas que morreram na estrada 236-1 a tentar fugir do fogo, houve a única morte registada dentro da habitação. “Coitado, tinha só 53 anos”, lamenta o vizinho Manuel Cunha, que vem de passear um dos quatro cães e 10 gatos que tem em casa.
A destruição é muito grande e a forma como afetou as pessoas é muito diversa. Há quem tenha perdido tudo, há quem não tenha perdido nada e há quem tenha perdido alguma coisa, mas no rescaldo toda a gente perdeu muito e logo à cabeça vem a qualidade de vida.
O negro que envolve os aglomerados habitacionais é igualmente traumatizante, já para não falar das perdas efetivas. Por todo o lado se encontram árvores de fruto ardidas e com os frutos queimados caídos no chão, hortas que se assemelham a mantos negros estendidos pelo chão, oliveiras (muitas), vinha e muitas outras espécies carbonizadas.
A zona florestal parece um vasto campo de espigões negros, de cabeleira castanha escura, espetados ao longo de vastas áreas, contrastando com o azul celeste do céu entrecortado pelo branco plácido das nuvens. As placas toponímicas estão derretidas, mal se lendo os nomes das localidades, os sinais de trânsito, no IC8 e EN 236-1, estão literalmente deitados derretidos pelo fogo e pelo calor, rails retorcidos, amolgados e negros.
A negridão marca uma paisagem em que se destaca pela diferença o negro do alcatrão, pois por estes dias parece mais ser branco no meio de tanto preto carvão.
Percorrendo as aldeias de Mó Grande, Casalinho, Mó Pequena, Aldeia das Freiras, Pinheiros de Bolim, Ramalho, Vila Facaia, Pobrais, Nodeirinho e Mosteiro é possível testemunhar a dimensão do que o fogo destruiu, vendo-se casas no meio dos aglomerados habitacionais em ruínas ao lado de outras intactas, terrenos inteiros ardidos e rodeados de verde sobrevivente, veículos e alfaias agrícolas calcinadas, plantações devastadas e negro, muito negro por todo o lado.
Mas nessas deslocações é possível também testemunhar a solidariedade dos Portugueses. Individualmente ou em grupo, uns mais espontâneos, outros mais organizados, há gente por todas as aldeias a ajudar e a querer ajudar.
“Esteve aqui um grupo de meninas de Lisboa, traziam sementes para replantar as terras”, conta Isabel, sorrindo face à ingenuidade dos voluntários, relatando ainda que “estiveram a ajudar a apanhar as batatas”.
De facto, a onda de solidariedade para com as vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra, Figueiró dos Vinhos, Pampilhosa da Serra, Góis e Sertã, todos eles parecendo parte de um só que durante seis dias lavrou na Região Centro de Portugal, afetando três distritos (Leiria, Coimbra e Castelo Branco), é enorme.
Desde a primeira hora as IPSS estiveram no terreno e, logo no domingo (segundo dia do incêndio), o presidente da CNIS deslocou-se ao Centro de Operações de Pedrógão Grande, onde, com outras entidades, encetaram as primeiras démarches para que a solidariedade fosse para o terreno.
Logo nesse dia, o padre Lino Maia, através de uma missiva, instou todas as IPSS das regiões afetadas, particularmente as IPSS dos distritos de Leiria e de Coimbra, “para além de muitos outros apoios”, a estarem “disponíveis também para o acolhimento de emergência”.
Como elos de ligação ficaram as associadas intermédias da CNIS dos dois distritos mais afetados.
A onda solidária foi em crescendo e volvidas duas semanas parece mesmo um tsunami, com as entidades que no terreno coordenam e articulam a ajuda às pessoas a solicitarem até o abrandamento de dádivas.
Foram criadas diversas contas bancárias solidárias, que já angariaram alguns milhões de euros, mas como se sabe, nas tragédias o muito é sempre pouco. Entre as variadas contas já estão reunidos perto de 10 milhões de euros, pairando ainda algumas dúvidas sobre como e quem fará a distribuição e quem tem direito.
A União das IPSS do Distrito de Coimbra (UIPSSDC) criou uma conta solidária a favor das vítimas do incêndio de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos, Castanheira de Pêra e Góis.
Em missiva dirigida a todas as instituições associadas, o presidente da UIPSSDC, Horácio Santiago, apelou “a todas as IPSS do distrito de Coimbra e à comunidade, em geral, que encaminhe os respetivos donativos” para a conta «Solidários com Pedrógão Grande - UIPSS Coimbra», cujo número é: NIB - 0036 0414 99106007688 48; IBAN - PT50 0036 0414 99106007688 48.
A conta estará aberta a donativos até ao próximo dia 16 de julho, tendo já recebido donativos de diversas IPSS associadas do distrito e não só.
“Os montantes angariados serão encaminhados diretamente para as vítimas desta tragédia. A UIPSSD de Coimbra e o Montepio Geral engrossarão este movimento solidário com os seus próprios donativos”, pode ler-se na carta.
Por outro lado, a União Distrital está ainda disponível para receber outro tipo de donativos, que poderão ser entregues todos os dias, entre as 14h00 e as 17h30, na rua João Machado, Nº100 – sala 104, em Coimbra.
Também a UDIPSS Leiria fez saber junto das suas associadas que o Montepio Geral, com a qual tem um protocolo de cooperação, está a desenvolver ações concretas de apoio a instituições e famílias no contexto da tragédia que assolou o norte do distrito.
“Estamos disponíveis para estabelecer as «pontes» necessárias à efetivação desta ação, fazendo chegar junto da instituição bancária qualquer solicitação, de qualquer natureza, da parte das nossas associadas”, lê-se no texto enviado às instituições do distrito de Leiria.
Por outro lado, em articulação com a Cáritas Diocesana Leiria-Fátima, a União Distrital de Leiria tem feito chegar às suas associadas as necessidades das populações afetadas pelos fogos, reencaminhando a ajuda para esta instituição.
Por seu turno, estando a Cáritas de Coimbra no terreno nos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos, a coordenação tem sido desta.
Levantar necessidades das populações, dar assistência e entregar bens, produtos, como os alimentares, mas também eletrodomésticos, mobiliário e outros, é o trabalho que a IPSS de Coimbra tem estado a desenvolver, com especial incidência em Pedrógão Grande, por nos outros concelhos esse trabalho estar a ser feito por outras entidades.
Mariana Figueiredo, da Cáritas de Coimbra, reporta que a instituição “recebeu donativos e contactos de IPSS de todo o País” e muitos começaram logo a chegar na segunda-feira, ainda o fogo lavrava.
A instituição criou um centro de logística no Centro paroquial de Pedrógão Grande e ainda uma equipa que ajudasse na distribuição dos donativos, mas também registasse as necessidades das populações.
Há que notar que a tragédia do incêndio, em alguns casos, agudizou situações sociais já por si frágeis e complicadas, a que se junta um elevado número de pessoas idosas que vivem sozinhas.
Perante a tragédia, a sociedade civil respondeu (e está ainda a responder) de pronto, aliás como sempre quando membros da(s) comunidade(s) estão mais vulneráveis.
Organizada de forma espontânea, como tem acontecido bastante com a situação dos incêndios de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra, Figueiró dos Vinhos, Góis, Sertã e Pampilhosa da Serra, ou valendo-se de redes já institucionalizadas, a sociedade civil volta a dar mostras de enorme solidariedade.
E não se pense que as populações afetadas não agradecem e não reconhecessem. À oferta de produtos, muitas pessoas, não necessitando, dizem não querer, dando mostras de uma enorme humildade e gratidão.
Isabel, 53 anos, de Nodeirinho, que sentiu o fogo levar-lhe um filho e um irmão, à oferta de “uma couvinha para fazer sopa”, pelo pároco Júlio Santos, respondeu de pronto: “Não quero nada, mas se quiser dou-lhe um saco de batatas acabadinhas de apanhar”.
Recorde-se que os fogos fizeram 64 mortos, 254 feridos e queimaram cerca de 30 mil hectares de floresta, deixando dezenas de famílias desalojadas, muitas outras sem algum do sustento que tiravam das hortas e quintais, dezenas de desempregados, numa região onde não proliferam as ofertas de emprego, e destruíram diversas unidades produtivas.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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