HENRIQUE RODRIGUES

Eleições autárquicas regionais

1 - Como vem sucedendo há vários anos, passei parte das férias na Galiza, nas Rias Baixas, essa espécie de Minho mais setentrional, mesmo no canto noroeste da Europa, onde as marcas da herança celta são mais nítidas, nos rituais, na paisagem e nas pessoas e que continua, numa contiguidade sem diferenças perceptíveis, o Norte de Portugal.
Diz-se por lá que as Rias Baixas e as aprofundadas entradas do mar por terra dentro que as rias constituem são as marcas dos dedos de Deus, quando criou o mundo e assentou a mão ampla no noroeste peninsular, a contemplar a obra feita.
Não sei se foi esse desenho casual a origem das Rias de Vigo, de Pontrevedra, de Arosa, de Muros e Nóia e de Corcúbion – mas o certo é que as repetidas enseadas de águas do mar, de uma tranquilidade apaziguadora, com praias quase coladas a campos de milho ou a vinhas de albariño, constituem uma geografia doce, um equilíbrio de paisagem amena e cordial que não desdenha a explicação genesíaca daquele espaço da fachada atlântica deste nosso espaço comum que é a Península Ibérica.
Foi na Galiza, foi em Espanha, portanto, que acompanhei, pela imprensa, os atentados na Catalunha.
Não vou, nesta crónica, repisar tudo o que já foi dito sobre o horror destes ataques ao nosso modo de vida pacífico e tolerante, como é apanágio das sociedades abertas e democráticas que soubemos construir neste espaço europeu onde nos encontramos integrados – e que constitui uma raridade, é preciso dizê-lo, noutras paragens do globo.
Mas há um aspecto, que foi muito debatido em Espanha, a propósito desse ataque terrorista, que não vi tratado com grande destaque na imprensa portuguesa – imprensa que também me acompanhava diariamente quanto à informação do que se passava no nosso País durante esse período – e que é o seguinte:
O clima de crispação política e social entre a Catalunha e o Estado Espanhol encontra-se ao rubro, estando prevista a realização de um referendo, no próximo dia 1 de Outubro, com vista à posterior declaração de independência dessa região, sob a forma de república, referendo e processo independentista considerados ilegais pelo Governo central, por violarem o princípio da unidade do Estado e a forma monárquica consagrados na Constituição Espanhola, mas que a Generalitat, isto é, o Governo autónomo, persiste em levar a cabo na data aprazada.
Nesse registo, a imprensa deu eco de um grande mal-estar cruzado entre as forças policiais nacionais – a Guardia Civil – e as catalãs – os Mossos d’Esquadra -, acusando-se mutuamente de ocultação de informação relevante, que poderia ter permitido uma actuação preventiva que pudesse ter evitado ou minorado os efeitos da agressão terrorista.
O Governo Central acusou igualmente o Governo da Catalunha de exploração política dos atentados, em benefício dos seus interesses nesse conflito; e a Generalitat pagou-lhe na mesma moeda, acusando Mariano Rajoy de ser ele o oportunista.
(Um pouco como cá durante a silly season, em que o Governo e o PS acusam o PSD de aproveitamento político dos fogos que vitimaram este ano tantos dos nossos; e o PSD replica, acusando os Governos do PS, presentes ou passados, desses mesmos pecados.)
Ora, a nota do que se passou lá na Galiza e que pretendo partilhar com os meus leitores foi o facto de a imprensa local, designadamente o jornal “La Voz de Galicia” ou a estação de televisão regional, defensores históricos da autonomia galega em face do Estado espanhol, terem expressivamente tomado o partido do Estado central no conflito independentista da Catalunha e criticarem severamente o Governo catalão pela tentação secessionista.
O mesmo acontece com o governo regional, a Junta de Galicia, solidário com o Governo central no conflito e na tensão.

2 – Ora, como se sabe, a Espanha, enquanto realidade político-constitucional, é constituída por uma série de nacionalidades, com diferentes graus de autonomia e de governo próprio, correspondendo a uma sedimentação política de territórios com uma história diferenciada.
Umas dessas nacionalidades constituem estádios mais avançados, do ponto de vista da autonomia e do auto-governo, como é o caso da Catalunha, do País Basco ou da Galiza, territórios que já durante alguns períodos da História constituíram reinos, ou Estados, independentes.
(O Reino da Galiza, por exemplo, integrava, nos Séculos IX e X, o território que depois foi constituído em Condado Portucalense e que deu origem a Portugal, no século XII).
E as pessoas da minha idade ainda se lembram de que aprenderam na escola primária que, em 1640, quando da Restauração da Independência de Portugal, após a expulsão dos Filipes, uma das razões por que D. João IV conseguiu vencer a guerra – justamente chamada da Restauração -, contra Filipe IV de Espanha (Filipe III de Portugal), foi o facto de as tropas castelhanas terem tido que acorrer à Revolta da Catalunha, que já então queria regressar à independência, de que gozara durante séculos, até à unificação das coroas de Castela e Aragão, com os Reis Católicos, no Século XV.
E o País Basco constituiu, durante décadas, e até há pouco tempo, a maior ameaça à unidade política espanhola, com os atentados da ETA a comandar o ritmo da luta independentista.
Mas o cessar-fogo foi finalmente declarado pela ETA, não constituindo o País Basco, actualmente, uma ameaça de desagregação do Estado).
Outros territórios, igualmente integrados na grande Espanha, possuem instituições de governo próprio e graus de autonomia mais difusos, ou de menor densidade, como é o caso das cidades de Ceuta e Melilla, enclaves localizadas em território marroquino, ou da Comunidade Valenciana, da Andaluzia e da Extremadura, de Castela e Leão e Castela-la-Mancha, das Astúrias, de Navarra, de Aragão, de Múrcia, de La Rioja, da Cantábria e de Madrid, das Ilhas Baleares e das Canárias.

3 – Voltemos à Galiza e à Catalunha.
Ignoro se têm razão ou não os catalães em querer ser um país independente.
Não conheço como se vive em Barcelona, ou no resto do Condado, apenas tendo uma ideia vaga de que é invocado como fundamento para a separação o facto de o PIB catalão ser superior à média espanhola e os catalães não se sentirem obrigados à solidariedade com as outras partes de Espanha, que vivem pior.
(Entre outras razões de queixa, algumas certamente muito relevantes, como é o caso da associação que muitos catalães fazem entre o centralismo e a ditadura franquista, que tornou a repressão, após a Guerra Civil, muito mais feroz do que em outras zonas de Espanha, já que na Catalunha a resistência republicana foi mais forte – repressão cuja memória ainda hoje é bem presente, como podemos constatar pelos romances do barcelonês Carlos Ruiz Zafón.)
Mas o que quero salientar é o facto de as elites e os líderes políticos e de opinião galegos, defensores do aprofundamento da autonomia da Galiza face ao Estado, estarem, neste conflito que pode conduzir à desagregação e enfraquecimento do poder central, do lado do Estado e contra a tentação separatista – isto é, defenderem a sua própria autonomia; mas defenderem em simultâneo a unidade do Estado.
E lembrei-me do referendo sobre a regionalização do nosso País, durante o Governo do Engº António Guterres, e da campanha de contra-informação com que fomos bombardeados pelos defensores do “não”, a pretexto de que Portugal constituía um país unitário e que a sua divisão em regiões iria provocar tentações separatistas.
Como vemos pelos meus amigos galegos, não é assim; pelo contrário, a autonomia das partes coexiste harmoniosamente e é mesmo condição do desenvolvimento do todo.
“Cada un en su sitio”.
Infelizmente, as eleições autárquicas que se vão realizar em Portugal, no mesmo dia da consulta referendária catalã, deixaram o tema a marinar.
Mas, como acontece com os cabritos, que devem ser temperados numa marinada de dois dias, antes de assar, a marinada dos temas políticos não deve prolongar-se por tempo indeterminado, sob o risco de apodrecimento.
E umas eleições locais, infelizmente na modalidade incompleta que é a nossa, seriam uma boa sede para a discussão dessa reforma que a Constituição determina mas que os políticos de turno não pretendem.
Muitos, como Rui Rio, já mudaram de opinião, de então para cá.
Quem sabe se o próprio Presidente da República, que, como líder do PSD, teve a parte maior no chumbo do nosso referendo doméstico, vai fazer 20 anos, não terá também já mudado de campo.
Não nos tem ele lembrado o seu passado como Constituinte?

Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)

 

Data de introdução: 2017-09-09



















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