1 - Com a morte de D. Manuel Martins, na semana passada, perderam estas crónicas, que aqui vou publicando há cerca de 20 anos, um leitor singular e atento.
Tive, durante muitos anos, o prazer e o privilégio da amizade do Bispo D. Manuel Martins, fazendo com ele parte de um pequeno grupo que se encontrava, algumas vezes por ano, à volta de uma mesa de almoço, a pretexto do aniversário de cada um de nós.
A mais recente reunião foi no fim de Junho passado, no dia de S. Pedro.
D. Manuel Martins puxava amiúde a conversa para o material de que tratam estas crónicas e para o estilo delas – e deixava sempre uma nota de elogio para o que poderíamos chamar o texto implícito e para os vários cruzamentos e cerziduras que nelas perpassam.
Creio que uma das razões para essa como que identificação vinha do facto de D. Manuel Martins ter sincera predilecção por registos menos canónicos, pelos desalinhamentos, pelos desvios da unicidade normativa.
Não se quer nem pode esquecer a escorreita malícia que lhe fazia brilhar o olhar e alargar a subtileza do sorriso quando a conversa se encaminhava para as feiras de vaidades que o seu espírito crítico escalpelizava com incisões precisas.
Ora, é também essa a nota com que tenho procurado manter o tom destas crónicas, durante tanto tempo: indo contra a corrente, prescrutando a hipocrisia, desvelando a fatuidade.
Já aqui o escrevi algumas vezes: elogiar os poderes, já há muito quem o faça, não é aliciante.
Por mim, prefiro, por sistema, a crítica, a crítica a quem manda – não vão os poderosos, circulados por cortesãos e vassalos, convencer-se de que as suas qualidades são as inumeráveis que a corte lhes imputa; e não as escassas com que a natureza e a educação os dotou.
2 – Juntou-nos o Padre Nuno Cardoso, que foi pároco de Alfena, sob cujo tecto e auspícios e a cuja mesa se foi constituindo o nosso pequeno grupo e se foi consolidando a amizade entre todos.
Também ele homem inquieto e justo, avesso a reverências e salamaleques, encontrou em D. Manuel Martins o bispo que lhe acalentava os sonhos de solidariedade que sentia que por vezes lhe falhava “in domo sua” e lhe ia abençoando as novas obras de misericórdia, numa espécie de extensão extra-territorial da Diocese de Setúbal.
(Para a numerosa família das Instituições de Solidariedade, Alfena passou a constituir, durante o apogeu do cavaquismo, a afirmação da autonomia e da independência do Sector Solidário, quando a maioria absoluta do Governo de então quis submeter as Instituições de Solidariedade à sua agenda.
Foi no Pavilhão Gimnodesportivo da Paróquia de Alfena que, em escassos dias, por mobilização da UIPSS /CNIS e com o entusiasmo e capacidade de organização do Padre Nuno Cardoso, se levou a cabo a maior concentração de instituições até então ocorrida, para mostrar ao Governo a força do Sector e o apoio ao Ministro de então, Silva Peneda.
Dessa afirmação de força saiu o Despacho Normativo nº 75/92, que foi, durante 25 anos, o grande instrumento normativo da Cooperação entre o Estado e as IPSS – e que constituiu um dos marcos do legado de Silva Peneda, pouco depois afastado do Governo, por se ter colocado do lado das Instituições.
De vez em quando, é preciso mostrar músculo, como em Alfena, ou em Fátima, quando do ataque do Governo ao ATL, no Governo de José Sócrates.
É que a vontade de mandar em casa dos outros não é privilégio da direita nem da esquerda.
É próprio do poder.
Por isso é que prefiro aqui a crítica ou a sátira ao ditirambo ou à elegia – e creio que era uma certa irreverência que o Bispo gostava de ler nestas crónicas mensais, e por ela me entusiasmava a prosseguir no mesmo tom.)
3 – Por falar em maiorias absolutas, é ajuizado lembrar, como o fez Catarina Martins, no rescaldo das eleições autárquicas, que o resultado delas se traduziu no reforço de tais maiorias, tendo o Bloco de Esquerda falhado no seu objectivo declarado de enfraquecer, pelos seus eleitos, o monolitismo que normalmente acompanha o poder exercido pelas maiorias absolutas.
Como assevera a sabedoria antiga, “se todo o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente.”
Ora, se tal conclusão já foi verificada pela prova dos factos, no que toca às autárquicas, o certo é que o aumento muito significativo do número de votos no PS, a par do afundamento do PSD e das perdas do PCP, prenuncia, como têm referido os comentadores, uma fortíssima possibilidade de o PS vir a obter, daqui a dois anos, uma vitória absoluta nas próximas legislativas, até por não se prever que haja, nos próximos tempos, oposição que se veja.
Bem pode António Costa dizer que o resultado destas eleições não perturba a paz da geringonça; e até pode estar certo disso e trabalhar para reforçar a cola imprevista que liga o PS ao Bloco e ao PCP.
Mas os militantes, senhores…!
Num quadro de maioria absoluta, os militantes vão querer tudo só para eles, sem repartir com os aliados da véspera o que pode ser privilégio de uns poucos.
Haverá mais interessados do que cargos para por eles distribuir.
É dos livros que, havendo mais de um interessado a um determinado cargo, seja a cotovelada o método de atribuição.
É como a dança das cadeiras, que vai eliminando os menos hábeis, ou mais lentos.
Os adversários vão-se eliminando pelo caminho.
Nessa altura, ninguém vai querer a companhia dos militantes do Bloco, ou do PCP, para atrapalhar a distribuição gratuita do trigo, como no Império Romano.
Por mim, cá irei continuando a dizer como o anarquista espanhol – talvez agora se passe a dizer anarquista catalão, já que é à Catalunha que se associa o foco da resistência anarquista às tropas de Franco, durante a Guerra Civil: “Hay Gobierno? Soy contra!”
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
Não há inqueritos válidos.