CARVALHO DA SILVA, INVESTIGADOR, EX-LIDER DA CGTP

Grande parte da inovação social é falácia e muito do empreendedorismo social é fraude

Durante 25 anos e sete meses Carvalho da Silva esteve na coordenação da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses - Intersindical Nacional (CGTP-IN). Abandonou em janeiro de 2012 o cargo de Secretário Geral para se dedicar a uma vida de professor universitário.

Licenciou-se em Sociologia no ISCTE, doutorou-se em 2007, também no Instituto Universitário de Lisboa, foi Professor Catedrático convidado da Universidade Lusófona, entre 2011-2016.

É investigador do CES desde 2009. Coordena a delegação do CES em Lisboa e o Observatório sobre Crises e Alternativas, criado por este centro em abril de 2012.

Apesar de ter abandonado a vida política nunca abdicou de uma intervenção social e sócio-política na sociedade portuguesa, sobretudo nas áreas relacionadas com o sindicalismo, o trabalho, o emprego, as políticas sociais, a economia, o desenvolvimento.

Aos 69 anos de idade, o seu mais recente projeto, razão direta para esta entrevista, é o CoLABOR, Laboratório Colaborativo que pretende estudar a fundo o setor social.

Jornal Solidariedade - Tem vindo a fazer uma aproximação ao Terceiro Setor e, mais concretamente, ao Setor Social Solidário...
Carvalho da Silva - É uma aproximação em continuidade e em crescendo. Uma das vertentes que sustenta essa aproximação é o da observação das questões do trabalho, do emprego e do contexto societal em que o trabalho e o emprego se vão desenvolvendo. Isso mostra conexões com campos cada vez mais diversificados. A outra vertente é a observação de que a sociedade está desafiada a reinventar formas de organização social e económica, a recuperar velhas formas, reformulando-as, e também a encontrar novas formas que não se situem na lógica do lucro imediato e a todo o custo. Num encontro com dois dos ministros que estão nestas áreas disse-lhes que, para mim, talvez um dos desafios mais interessantes seria conseguir durante a próxima legislatura fazer-se uma discussão profunda sobre a revitalização do chamado Terceiro Setor. Onde está a Economia Social e Solidária, que tem um espaço muito específico, o movimento cooperativo, e outros... Estou convencido que se houvesse essa discussão estruturada podia dar-se um impulso muito significativo a uma definição estratégica sobre o desenvolvimento do país. É possível que no espaço em que a CNIS se estrutura e atua haja uma reflexão profunda sobre as capacidades e as limitações que o setor tem. O tempo está a exigir isso. Quando se leem textos do Papa Francisco e de pensadores nestas áreas, percebe-se que é uma emergência: Temos esse desafio da invenção das novas formas de organização social e económica. É uma premência até para responder à financeirização da economia e a mercadorização do trabalho.

Dois conceitos que gosta de utilizar...
A financeirização da economia e a mercadorização do trabalho estão identificadas por pensadores de várias áreas e são evidências... O período de crise que o país viveu foi espaço temporal de uma afirmação muito forte da mercadorização do trabalho. Um tempo em que todas as condições no trabalho têm que se submeter à determinante económica, que é influenciada em absoluto pela lógica financeira. É uma realidade. O trabalho foi utilizado como variável de ajustamento...

Tem em mãos um projeto que vai nesse sentido, o CoLABOR. De que se trata?
Fiz parte do grupo original em que estas preocupações surgiram e, desde a primeira hora, apareceu a ideia de contactarmos a CNIS para lhe lançar este desafio. Portugal precisa de uma análise, um mapeamento dos problemas. Como disse em Fátima, é preciso um mapeamento dos desafios societais emergentes e uma avaliação do atual modelo de provisão e financiamento dos cuidados sociais. Não é só isto. Mas o mapeamento é fundamental. Quais os desafios do setor, do ponto de vista do contexto, no atual patamar de desenvolvimento da sociedade portuguesa, as capacitações de gestão, formas de organização do sector e de cada uma das instituições, e a capacitação das pessoas. As IPSS prestam serviços sociais fundamentais. De uma grande sensibilidade. Um dos grandes objetivos, para termos melhor prestação de serviços, é termos pessoas formadas e capacitadas para serem bons prestadores de serviço. Não se trata apenas de injetar dinheiro. Com a mesma disponibilidade financeira a capacitação dos recursos humanos e a recompensa fazem a diferença. Este projeto servirá para isso. É um Laboratório Colaborativo. Vamos ver se ele é aprovado, esperamos que sim. Temos tido um diálogo contínuo, desde logo com o Ministério da Ciência e Tecnologia, com o ministro, a Fundação de Ciência e Tecnologia, com a Comissão de Avaliação Internacional, enfim, tudo para que seja construído com coerência.

De que áreas se ocupará?
Há três áreas. A do Trabalho, com as mudanças tecnológicas e organizacionais, a financeirização da economia, mercantilização do trabalho e os novos desafios. A área da Proteção Social e a questão mais específica da Segurança Social. As respostas do que são as funções das IPSS, a cooperação com a Segurança Social são alguns dos nós górdios importantes... Queremos criar um espaço de estudo, de produção de dados estatísticos, de tratamento dos dados disponíveis, um centro de abordagem destes problemas que possa disponibilizar às instituições que estão no projeto, mas também à sociedade, em alguns casos com serviços pagos, uma série de indicadores que sejam úteis. Nós, em Portugal temos muito insuficiente disponibilização de dados estatísticos. Existem, mas não estão disponíveis e sem tratamento articulado. No âmbito do CoLABOR temos que produzir novos indicadores que, para os atores do setor, sejam universais, estejam disponíveis e que correspondam à fotografia a nível de região, distrito, concelho, que possa referenciar a diferenciação das respostas sociais. O CoLABOR reúne três centros de investigação, a Santa Casa da Misericórdia, a Administração Pública, a CNIS, a Sonae, que é o maior empregador, e outros grandes grupos económicos. Estão todos com a confiança de que pode ser uma coisa útil.

Está também a pensar em inovação social?
Uma grande parte da inovação social é falácia. Há novas dinâmicas interessantes, mas há muito "gato por lebre". Há muito empreendedorismo social que é uma fraude. Fraude completa. O setor está debaixo desta pressão. Por um lado do objetivo do lucro, a financeirização. À escala mundial quando vemos quem está por trás destas iniciativas de empreendedorismo social encontramos as grandes empresas. Outra tensão é com o Estado, que tem que financiar o setor, é uma evidência. Como o dinheiro sai do orçamento de Estado uns dizem que o valor é elevado outros dizem que vai ter que aumentar. E por outro lado as instituições, que estão desafiadas a encontrar soluções novas. 

O Terceiro Setor em Portugal tem uma realidade muito específica?
Muito distinta. Ainda agora em Fátima, no dia da CNIS, alertei isso. Uma das observações que faço é a de que se olhe para a realidade portuguesa com as características distintas que ela tem. Portugal tem uma especificidade que é preciso respeitar. Quando eu falo da importância estratégica do Terceiro Setor, e que uma das maiores mudanças poderia ser a discussão de uma estratégia para o país, eu vejo isso numa perspetiva qualitativa. A prestação de cuidados é uma atividade que implica trabalho, mas deve ser altamente valorizada. O aumento da esperança de vida é talvez a maior conquista da humanidade nos últimos 120 anos, mas continuamos a tratá-lo como um fardo. Não pode ser. A sociedade tem que ser preparada neste sentido. O emprego que nós necessitamos para o futuro neste sector das IPSS tem que ser mais qualificado e mais valorizado. É um desafio. A ideia de que prestação de cuidados tem que ver com a boa vontade, a generosidade, o humanismo das pessoas não chega. Precisamos de profissionais qualificados. Este é um espaço de criação de emprego de qualidade. Não pode ser num conceito caritativo, mas numa conceção de Estado Social. O princípio é que as pessoas, todas, têm que ser tratadas com dignidade. Por isso se levanta a questão do Estado Social e Estado Solidário. A cidadania social tem que estar presente.

O Estado tem que ser cada vez menos solidário e cada vez mais social?
A solidariedade é um valor. Na crise viu-se a importância dessa característica nas IPSS. Nas situações de aflição isso é fundamental. A solidariedade e a caridade são valores, mas do ponto de vista utópico, o grande objetivo das IPSS devia ser o de as pessoas não precisarem desses valores. A dimensão do social, incorporado num conceito desenvolvido de cidadania, devia garantir que muitas IPSS não teriam que prestar os serviços de solidariedade que prestam, e ainda bem. Era sinal de que a sociedade teria avançado. Mas nós vivemos numa realidade concreta. E temos que trabalhar com essa realidade.

Este é um setor económico com raízes ideológicas?
Há visões ideológicas que continuarão a existir. As IPSS tem uma longa história. Têm um percurso. Algumas são herdeiras de movimentos seculares. Depois do 25 de abril houve um impulso de organizações da sociedade civil com franjas ideológicas diferentes, muito mais plurais, de movimentações de moradores, como respostas concretas a problemas concretos. Foi uma riqueza enorme. Depois tivemos o período de adesão à UE que diversificou fontes de financiamento, e fez surgir novas instituições, matizadas do ponto de vista ideológico. Foi o segundo grande período da vida das IPSS. Agora vivemos o terceiro grande momento da história das IPSS no Portugal democrático. Temos a financeirização e empresarialização de tudo a fazer pressão enorme sobre o espaço onde se move a Economia Social e a tentar fazer da pobreza, da prestação de cuidados e de uma série de outras coisas, um espaço de negócio. São propostas económicas do neoliberalismo que estão carregadas da demonstração de que há sempre uma receita neoliberal para qualquer problema. Há sempre soluções financeiras, nem que seja à custa de dinheiros públicos que são para aí canalizados.

Os partidos têm perspetivas diferentes do Setor Social Solidário. Até nos que apoiam o atual governo. O Bloco de Esquerda parece defender a estatização...
O BE é um partido relativamente novo e não tem uma ligação profunda àquilo que eram os tradicionais espaços de movimentação social. É normal que o Bloco, nestas polémicas, sobre como é que pode ser o futuro, surja com posicionamentos inerentes àquilo que é a sua característica de não ter um percurso feito nesta área. Bem diferente do PCP que esteve na origem, ainda antes do 25 de abril, de muitas das dinâmicas do mundo do trabalho que deram origem ao movimento sindical e a muitas formas de organização social, como as casas do povo e a luta operária. Fez conexões, culturas, instituições. O Bloco não tem isso. O Bloco tem maturidade, visão e propostas sobre o futuro da sociedade que podem ajudar a carregar questões interessantes para o debate, mas não tem conhecimento histórico deste sector. As IPSS podem ser colocadas de lado ou instabilizadas nesta fase? Seria um erro tremendo. Há algumas tensões mais imediatas e mediáticas que estão aí, eu digo: faça-se uma gestão com juízo e não se instabilize a vida de uma resposta que é da sociedade e é muito importante. Isso traz para o debate a questão da fiscalização dos meios.

Trouxe e é conveniente...
Há fiscalização. Ela pode é não estar adequada. As IPSS queixam-se de que até há excesso. Induz cargas burocráticas que limitam a capacidade de resposta. É preciso corrigir. Há também incapacidades de fiscalização evidentes, em situações de margem, que têm peso, que influenciam a imagem que a sociedade tem do setor. As IPSS devem ir a esse debate sendo ofensivas. Tomando a dianteira apresentando e exigindo respostas. Há um financiamento do Estado, que tem que continuar a existir, que precisa de ser afinado e deve ser fiscalizado. O Estado está presente, a iniciativa privada existe. É preciso definir bem qual é o espaço público, o da economia social, que é central, os espaços dos privados e, acima de tudo, identificar as fontes onde se vão buscar os meios. É preciso clarificar. A política de cooperação e a relação da Economia Social com o setor privado.

A realidade sócio-económica onde atuam as IPSS é única?
AS IPSS têm que manter os seus valores e a sua identidade. Isso é fundamental. Isso é o que é distinto. O quadro de valores que foi construído nas IPSS. Neste terceiro momento da sua história têm que olhar para os valores e a identidade.

Há quem defenda que é preciso rejuvenescer as direções e reverter o voluntariado.
Acho que qualquer ideia de substituir nos próximos anos o voluntariado todo por formas mais estruturadas, mais profissionais, é um erro. Há que articular outras questões. As pessoas não estão fechadas a mudanças de mentalidade. A sociedade portuguesa e as IPSS têm um problema que é o envelhecimento da sociedade. O voluntariado vai mudando consoante as gerações. Temos que identificar bem as capacitações, mudando perspetivas que estiverem erradas, fazendo uma evolução, reforço de especialização, não abdicando da especificidade do sector. Evoluções qualitativas grandes nas IPSS, mas também na Segurança Social e na articulação entre ambos. A política de cooperação tem que evoluir. No entanto, a autonomia das IPSS não pode ser posta em causa. As IPSS não são prolongamento de serviços públicos. Deve ser evidenciada de tal forma que provoque nas instituições uma autoresponsabilização e uma responsabilização perante a sociedade. A clarificação da autonomia que é, repito, imprescindível, deve colocar em evidência esta dupla responsabilização. O Estado financia, e tem que financiar, mas temos que trazer o Estado para uma presença mais dinâmica para uma ação mais formativa, indutora de capacitação e não se ficar apenas por funções de fiscalização que em alguns aspetos estão desatualizadas. As IPSS só cumprem os objetivos se tiverem uma intervenção de sentido transformador na sociedade.  

Ainda olham para si como o sindicalista?
É natural. Foram 25 anos e sete meses na coordenação da CGTP. Talvez tenha sido tempo de mais. Quando as pessoas se confundem com as instituições é porque lá estão há demasiado tempo. Não me admira que uma parte dos portugueses ainda me identifique como tal. Sempre fui bem tratado. No espaço da universidade e dos intelectuais, às vezes, recorrem a essa marca de sindicalista com a ideia de me tentarem engavetar. A generalidade das pessoas não me trata por doutor. Isto é um país onde qualquer licenciado é tratado assim. Comigo acontece o contrário. Em geral tratam-me pelo nome. E isso é agradável.

Imagina-se, de alguma maneira, presidente da República?
Não. Não posso dizer que nunca me passou pela cabeça. Houve um período em que muita gente me desafiou nesse sentido. Não apenas nas últimas eleições. A vez em que esteve mais próximo foi há uns bons anos por insistência do Dr. Mário Soares e outras pessoas. Tive que discutir com muita gente essa questão. Nas últimas eleições fui pressionado, mas eu tinha tido problemas de saúde delicados, há cinco anos. A um ano e meio das presidenciais andava num grande desafio com a minha saúde e escrevia-se que eu andava com estratégias para a candidatura... Se soubessem em que é que eu andava a pensar...

Como vê o cargo desempenhado por Marcelo Rebelo de Sousa?
Isso dava uma longa conversa... O Marcelo tinha a obsessão de ser Presidente da República. Conversávamos sobre isso, sempre por iniciativa dele. Ainda é cedo para balanços e para saber o que vai ficar deste estilo. Ele trouxe descompressão em relação à situação anterior. Não era difícil.
Sou dos que penso que Marcelo não é o autor da melhoria na confiança no futuro e paz social. A solução política que sustenta este governo deu muito mais para esta dinâmica de diminuição de tensões e criação de esperança do que se possa imaginar. Marcelo soube beneficiar deste clima, não prejudicou e deu acrescentos. A solução política que temos foi um achado excecional. Acreditava nela mas superou as minhas expetativas.

Mas a solução é irrepetível?
Depende de tanta coisa. E um ano e meio, até às eleições, é muito tempo. Acredito, no entanto, que não seja repetível. Mas pode não matar soluções do mesmo género.

Tem nostalgia da intervenção política?
Nenhuma. Quem me conhece percebe aquilo que vou dizer... Tenho uma perspetiva da vida que é viver mesmo. Vida vivida. Em certos momentos, depois de ter deixado a CGTP, ficava intrigao: como é que eu já nem penso nisso. Mas, serei sindicalista até morrer no que respeita às grandes questões. De resto, vou vivendo...

 

Data de introdução: 2018-02-09



















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