EDUARDO GRAÇA, PRESIDENTE DA CASES

A criação da Confederação Portuguesa de Economia Social é um avanço histórico

“Um avanço histórico”, “o acontecimento mais importante para a Economia Social desde a consagração constitucional de 1976” é como Eduardo Graça, presidente da CASES, olha para o processo que se desenvolveu em torno do I Congresso Nacional da Economia Social e que resultou no compromisso de constituição da Confederação Portuguesa de Economia Social, que no próximo dia 2 de maio tem a sua assembleia constitutiva. Pela primeira vez, as oito principais famílias do terceiro setor estão de acordo em unir-se para melhor se defenderem, melhor se representarem e alcançarem o reconhecimento público correspondente à sua consagração constitucional e história(s).

SOLIDARIEDADE – Finalmente, depois de muito tempo de costas voltadas, as entidades mais representativas da Economia Social deram o passo decisivo para unirem esforços no seio de uma organização. Em sua opinião o que determinou que a dispersão desse em união e as diferentes famílias chegarem a um consenso que vai permitir agora a constituição da Confederação Portuguesa de Economia Social (CPES)?
EDUARDO GRAÇA
– Até ao ano de 2016, podemos considerar mesmo já para finais do ano, havia uma grande reserva por parte das diversas entidades da Economia Social, ao nível de cúpula, à criação da confederação. Penso não errar se disser que somente após a decisão, já nos finais de 2016, tomada no âmbito do Conselho Nacional da Economia Social (CNES), de criar um grupo de trabalho para organizar o Congresso Nacional da Economia Social é que se começou efetivamente a verificar uma progressiva mudança de perspetiva no que respeita à criação desta realidade confederal. De facto, houve uma maturação bastante rápida, que levou a que progressivamente, mas num curto período de tempo, as entidades fossem encontrando dentro de si próprias as condições para irem decidir a adesão a este projeto. Julgo que é uma situação que resulta de um processo não explícito, razoavelmente antigo, que não estava na agenda e não estava debatido internamente em nenhuma das entidades. Era um processo que, embora não tivesse explicitado, existia e estava presente na cabeça dos presidentes das diversas entidades. Julgo que esta mudança que levou à tomada do compromisso de criação da CPES resulta, em parte, de um instinto de defesa das diversas entidades de per si e do conjunto das entidades face a fatores adversos, ou seja, os ataques que têm vindo a ser cada vez mais agressivos às entidades da Economia Social, sobre de diversas formas, e que têm vindo a ocorrer e a ganhar uma expressão pública razoavelmente agreste. As organizações que trabalham nas suas diferentes áreas de atividade sentiram a necessidade de se congregar para melhor se defenderem desses ataques e, simultaneamente, uma consciência que veio a tomar forma através das decisões, em cada uma dessas entidades, de que este setor, tendo consagração constitucional e tendo uma moldura legal muito forte, carecia de uma organização associativa que correspondesse a essa moldura legal…

Para além do grande enraizamento na sociedade?
Sim, claro, e uma grande proximidade em relação às comunidades, a todos os níveis. Portanto, houve uma assunção da necessidade de esbater as diferenças, embora mantendo a autonomia e a especificidade de cada uma das entidades, em favor de uma reunião em torno daquilo que são os pontos comuns das diversas confederações. Do meu ponto de vista, é um impulso que tem, simultaneamente, um instinto de defesa e a perceção da necessidade de unir forças para modernizar o setor. Poria em pé de igualdade estas duas perceções: a da necessidade de defesa dos ataques externos e a da necessidade interna de ganhar força, ganhar dinâmicas, dimensão, massa crítica para desenvolver um conjunto de medidas internas no setor, moduladas consoante as diversas organizações, para que se modernize, se profissionalize, para que possa adotar modelos de gestão que lhes permitam realizar a sua missão, que está inscrita na Constituição e na lei. Ou seja, não julgo, embora seja um objetivo fundamental, que a criação de condições para aceder à Concertação Social ao mais alto nível tenha um valor superior à necessidade de o próprio setor se modernizar e contribuir para dar respostas mais eficazes, mais transparentes e mais adequadas àquilo que são as necessidades atuais da nossa sociedade. E, simultaneamente, com isto encontrar dentro de si próprio a capacidade de se inovar, de inovar, que foi sempre uma das virtualidades deste setor. Ao contrário do que muita gente pensa, este setor, no fundo, constitui-se através de uma história de inovações nas respostas aos problemas da sociedade. Não é, pois, um setor antigo, obsoleto, ultrapassado ou que tenha perdido vitalidade, mas carece de contribuir de uma forma diferente para a própria modernização do nosso Estado Social. E é essa força que é preciso ganhar para que esse contributo possa ser pujante.

Essa consciência que as diferentes famílias tomaram de se unir marca, de certa forma, o fim de uma certa clivagem ideológica?Persistirão sempre as diferenças de pontos de vista de natureza ideológica, doutrinária entre as entidades que integrarão a CPES. Não é possível apagar essas diferenças porque elas enraízam numa história longa, de séculos, que cada uma dessas organizações transporta. Ninguém se iluda acerca da continuidade desse debate, o que mudou foi a perceção da prioridade em desenvolver um conjunto de políticas, comuns ao setor, para que ele possa afirmar-se de uma forma mais intensa e possa ter o papel que corresponde à expectativa dos cidadãos, das comunidades, do Estado e de cada uma das entidades de base que integram este setor. Ou seja, é modernizar o setor, do ponto de vista da gestão, fazer com que utilize instrumentos que permitam apresentar-se à sociedade e a todos os agentes com os quais se relaciona de uma forma mais transparente, que permita desenvolver a sua atividade de uma forma mais eficaz e utilizar os recursos de uma forma mais eficiente. Todo um conjunto de questões que não são tecnocráticas, mas que são fundamentais para que o setor se afirme face às mudanças que estão permanentemente a acontecer na nossa sociedade e cada vez com maior rapidez. Numa era como a atual, o setor não pode encarar o seu papel de uma forma fixista, tradicionalista, mas de uma forma dinâmica e moderna, que permita rejuvenescer, até mesmo os seus dirigentes e a execução das suas práticas.

Olhando ao contexto, este é um passo histórico?
Vejo este processo como um grande avanço, um avanço histórico. Talvez, desde o 25 de Abril, logo a seguir à consagração constitucional da Economia Social, este seja o acontecimento mais importante, porque permitirá um renascimento do setor para a sociedade, em que o setor tem uma grande oportunidade para se apresentar de uma forma diferente à sociedade que, no fundo, é de onde ele emana. Ser mais fiel aos seus fundamentos e aos seus valores.

Passou-se de um tempo em que as diferentes entidades davam mais importância às diferenças, para um novo estádio em que é mais relevado o que as une. Nesse sentido, a forma como foi realizado o Congresso Nacional da Economia Social, em várias sessões e sobre temas diversos, intercaladas com as reuniões da Comissão Organizadora do Congresso para trabalhar a criação da Confederação foi determinante? Ou seja, este modelo de diálogo intenso e regular acabou por ser decisivo para que as diferentes famílias olhassem mais para o que as une e não tão para o que as separa?
Eu estou fora do processo das dinâmicas de debate interno de cada uma das entidades, mas tenho que dizer que o processo foi virtuoso. O processo, que decorreu ao longo de todo o ano de 2017, foi virtuoso porque se aproximou daquilo que se apelida por brainstorming entre os dirigentes, aos mais diferentes níveis, de todas as entidades da Economia Social. Foi possível fazer um debate aprofundado sobre um conjunto de temas decisivos para o futuro deste setor e, ao mesmo tempo, os dirigentes puderam confrontar-se com as contradições e com um conjunto de espetos que ao longo dos últimos muitos anos não tinham sido debatidos de forma tão aprofundada e em comum. Este processo do Congresso, através de sessões temáticas, e as sucessivas reuniões, em número significativo ao longo do ano, contribuíram para esta aproximação e para fomentar um espírito em que a partilha e a colaboração ultrapassaram as diferenças e o conflito, que poderá sempre surgir quando estamos perante entidades que têm histórias diferentes e objetivos com aspetos diferentes. E foi muito importante o papel dos dirigentes de topo das diferentes entidades, individualmente considerados, porque foram capazes de assumir o seu papel de verdadeiros dirigentes, que olham o essencial em desfavor do acessório. Foram capazes de despojar-se de muitas particularidades, que são resultado da sua ação prática, em favor daquilo que era essencial. Honra seja feita a estes dirigentes, porque nem sempre é possível encontrar as circunstâncias que permitam que o essencial se sobreponha ao acessório.

Para esse consenso terá sido também determinante o ter-se criado um modelo para a CPES feito à medida da realidade portuguesa e não a simples importação de um modelo de outro país?
Houve uma inspiração que veio da experiência espanhola, que assenta em 20 anos da sua confederação, sabendo-se que as realidades são diferentes. Com essa inspiração, também foi possível fazer um caminho em que o modelo adotado corresponde à realidade das nossas entidades. No fundo, comporta uma aliança, não explícita mas real, entre a tradição do associativismo livre, que vem do período da Revolução Industrial, com as práticas das entidades da Igreja Católica, que vêm de muito antes desse período. Estas são as duas grandes correntes que influenciam as organizações da Economia Social em Portugal. Era necessário que fosse assumida esta aliança para que pudesse ser criada esta confederação e isso foi feito. Embora isto nunca seja discutido de uma forma explícita, nunca foi um assunto em cima da mesa, na realidade, conhecendo-se a história do movimento da Economia Social, há estas duas grandes correntes. E se elas e os seus protagonistas não se pusessem de acordo não seria possível criar uma entidade confederal desta natureza.

A Conta Satélite da Economia Social, feita pela CASES e o INE, e os números que evidencia, saltando à vista o peso e importância do setor na economia e na sociedade portuguesas, foi um instrumento muito importante em todo este processo?
A Conta Satélite é um instrumento que desempenhou um papel muito relevante. Já não por estudos empíricos parcelares ou por opiniões subjetivas dos dirigentes, mas através de um instrumento estatístico, ainda por cima oficial, e objetivo, é possível medir o peso do setor na economia e na sociedade. E, particularmente, permitiu evidenciar que o papel da Economia Social na criação de emprego é muito relevante, algo que julgo ser o ponto crítico mais importante. Ou seja, a Economia Social, com dados de 2013, contribui para mais de 6% do emprego remunerado a tempo completo. Isto na nossa economia e na nossa sociedade é muito relevante, porque considerando os subsetores, a seguir à construção civil é aquele que mais emprego cria. E não se considera nestes 6% as modalidades de trabalho a tempo não completo, nem o voluntariado. Com todo este conjunto de modalidades estaríamos a falar de muito mais do que 6%.

E estamos a falar de um período em que Portugal estava em crise?
Sim, no período mais crítico da crise, a Conta Satélite de 2010 identificou 5,5% de emprego e que, em 2013, passou para 6%.

Ou seja, apesar da crise, continuou a criar emprego e a crescer?
Exatamente. E ainda está abaixo da média europeia, pelo que ainda tem potencial para crescer mais. Este papel da Economia Social na criação de emprego cruzado com a característica de proximidade em relação aos territórios e de ser muito presente no Interior, onde em muitos locais é dos maiores empregadores com as autarquias, tem uma importância absolutamente decisiva para qualquer política que queira equilibrar o país do ponto de vista do processo de desenvolvimento. Se não se vislumbrar esta realidade é porque não se está a ver de forma correta o que é um processo de desenvolvimento sustentável a longo prazo. O papel destas entidades é decisivo em qualquer projeto de desenvolvimento equilibrado e sustentável do nosso país.

Os grandes objetivos, aqueles mais palpáveis, da CPES, em termos internos, é conseguir um lugar na Concertação Social e chegar a fundos europeus que cada uma das famílias de per si não consegue e, para o exterior, uma dinâmica comunicacional mais eficaz e afirmativa?
No fundo, resume-se tudo num grande objetivo que é reforçar o reconhecimento público do setor, quer junto dos poderes públicos quer da sociedade. Isto é, fazer corresponder à consagração legal ao mais alto nível que tem em Portugal, o que não é comum nos diversos países europeus, o reconhecimento público. Só unindo numa entidade confederal única as principais famílias de toda a Economia Social será possível conduzir um trabalho que assegure esse reconhecimento.

Num tempo em que a União Europeia parece querer apostar na Economia Social, a CPES tem muito mais possibilidades de conseguir algo do que as diferentes famílias de per se?
Claro, como é evidente. Cada uma das famílias de per si exercer um papel de influência junto das instâncias que decidem as grandes linhas de política é muito diferente do que uma entidade onde todas elas estão presentes e que represente toda a força do setor. São duas realidades completamente diferentes e, por isso, digo que este é o acontecimento mais importante da história da Economia Social em Portugal desde que, em 1976, a Constituição a consagrou com a designação de setor cooperativo e, mais tarde, cooperativo e social.

E um lugar na Concertação Social é um objetivo realista?
Todas as conquistas, geralmente, são consideradas impossíveis antes de serem alcançadas. Esta questão da Confederação há pouco tempo era considerada impossível, inviável, idealista pela grande maioria das pessoas, mesmo pelas que estão envolvidas na sua criação. É uma questão objetiva, no entanto é possível. Agora vão colocar-se outras questões. Vai colocar-se a questão de aceder à Concertação Social ao mais alto nível que hoje é considerada uma tarefa praticamente impossível, mas eu quero crer que é possível. Se os dirigentes da CPES trabalharem de uma forma adequada e correta no processo para alcançar esse objetivo e outros pode ser possível.

A CASES agora sai de cena, certo? Que papel terá neste novo contexto?
A CASES tem um conjunto de atribuições legais que o Estado lhe atribuiu que vai continuar a prosseguir. Tem atribuições no setor cooperativo, que vêm do INSCOOP, e que vai continuar a desenvolver. Agora tem também atribuições na área do voluntariado e na área estatística, como a elaboração das Contas Satélite da Economia Social, que vai continuar a fazer. E tem atribuições na criação de uma base de dados das entidades da Economia Social que vai ter que desenvolver. Ou seja, tem um conjunto de atribuições que o Estado delegou na CASES, que tem necessariamente que cumprir e tem ainda um conjunto de outras que são de interface com as entidades da Economia Social. Não há nada que seja contraditório entre o papel de uma Confederação, que resulta da vontade de entidades da sociedade civil, e o da CASES…

Mas em todo este processo a CASES teve um papel agregador e dinamizador, no entanto, agora vai afastar-se?
Obviamente, a CASES não pode integrar a Confederação, porque tem uma componente pública relevante. Embora congregue o Estado com as entidades da Economia Social, o que é também uma inovação do ponto de vista institucional, no entanto, a CASES prossegue finalidades públicas. Portanto, a CPES segue o seu caminho e a CASES apoiará no que estiver em coerência com os seus estatutos e no que for necessário.

No final deste ano de intenso trabalho o que destaca?
Sublinho que há objetivos considerados impossíveis que são possíveis e, por vezes, não é preciso muito tempo para que sejam concretizados. Destaco ainda o papel bastante importante dos dirigentes das entidades da Economia Social que estiveram presentes e muitos ativos em todo o processo, o papel do ministro Vieira da Silva, sempre de incentivo para que a CPES pudesse a vir a ser criada. Agora é preciso construi-la, outra batalha que vai começar agora e que não é fácil. É uma tarefa complexa e difícil, mas não tenho dúvida da existência de uma vontade sincera e autêntica por parte dos dirigentes das entidades para concretizar este projeto, que vai ter as suas dificuldades, contradições e problemas, como todo os projetos relevantes têm, mas no essencial existe uma reserva de vontade autêntica para que seja concretizado.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2018-04-30



















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