HENRIQUE RODRIGUES, ADVOGADO

Est modus in rebus

1 - Chegaram finalmente ao Partido Socialista as ondas de choque levantadas pelo falecido Governo de José Sócrates.
Já era altura de o PS se desembaraçar desse esqueleto que conservava guardado no armário e de se associar ao juízo moral feito pelas pessoas de bem quanto a esses tempos em que o Partido, sob a batuta de José Sócrates, nos pastoreou com mão pesada.
Era difícil, com efeito, assobiar para o lado quando, a cada dia, se avolumavam no espaço público notícias de factos e histórias de desmandos e desvios ocorridos, em grande parte, nesses anos que precederam e conduziram ao resgate e à troika.
Contribuiu para essa viragem da perspectiva com que o PS apreciou o comportamento do seu ex-líder a ocorrência quase simultânea de duas situações que acabaram de encher e fazer transbordar o copo da transigência e da tolerância: quer a reportagem da SIC, com inclusão dos interrogatórios judiciais de José Sócrates e das conversas telefónicas deste; quer as notícias sobre pagamentos feitos pelo BES ao Ministro da Economia de José Sócrates, Manuel Pinho, e pela EDP, para financiar uma cátedra ao mesmo ex-Ministro numa universidade americana, depois de sair do Governo.
(Afinal, não é só cá que o dinheiro e o poder compram títulos académicos, substituindo mestrados e doutoramentos.)
Tive a ocasião e o privilégio, nestas mesmas colunas e no tempo próprio, isto é, enquanto ele chefiava o Governo, de criticar, com meticuloso método e regularidade, as políticas e os tiques autoritários que caracterizaram os Governos de José Sócrates.
É também essa legitimidade que me faz considerar intolerável a reportagem televisiva com que a SIC nos exibiu a performance de José Sócrates durante o seu interrogatório perante o Ministério Público.

2 - É sabido que muitos consideram um facto como verdadeiro só pela circunstância de o mesmo ser veiculado pela imprensa.
Há como que uma presunção de que a realidade é o que a televisão nos mostra, mesmo que os factos pareçam improváveis e o cenário os apresente pintados em excesso.
Ora, nada nos permite afirmar que as declarações do ex-Primeiro Ministro sejam verdadeiras, ou correspondam ao seu pensamento.
Quem é suspeito de praticar crimes tem o direito de gizar uma estratégia que, no seu modo de ver, ou dos seus advogados, possa suscitar dúvidas nos inquiridores ou nos juízes – mesmo que essa estratégia assente em afirmações objectivamente falsas.
Não há, a meu ver, qualquer interesse público relevante que justifique uma exposição como a que a SIC fez das declarações de José Sócrates perante todo o País, obtidas numa situação de fragilidade, criando a ilusão de que o seu teor corresponde de facto ao pensamento de quem está a ser investigado e acusado.
Trata-se de uma situação em que Sócrates desempenhou um papel, como se fosse um actor, perante um público reduzido, para produzir nesse restrito auditório um particular efeito.
Nada nos permite dizer que as declarações que ouvimos correspondem ao que José Sócrates de facto pensa; podendo ser apenas as falas de um guião para o papel que quis representar, no exercício de um direito seu.
Ora, não é, a meu ver, legítimo que as declarações feitas por alguém, num contexto acusatório grave, em círculo fechado, representando um papel numa peça de teatro, possam ser transferidas para o espaço público, induzindo neste a conclusão de que tais declarações valem pelo seu valor aparente.
Como exemplo, nesse documentário José Sócrates afirma, a dado passo, que é um homem muito vaidoso e que só por vaidade se envolveu na vida política, que tal constituiria a sua única motivação.
Porque é que tal declaração há-de ser mais verdadeira do que se Sócrates afirmasse que tinha como motivação enriquecer, de forma legítima ou ilegítima; ou que se sentira tocado pelo ideal do serviço público.
Justamente: não sabemos; cada qual que acredite no que lhe parecer mais provável.

3 - Há, todavia, uma coisa que sabemos quase de ciência certa: os juízes que vão julgar José Sócrates hão-de ter visto o programa da SIC.
A reportagem não vai passar em juízo, durante a audiência de julgamento.
Os juízes não teriam aí ocasião de se confrontar com a inquietação, com o nervosismo, com as histórias mal contadas, com a falta de explicação, que José Sócrates evidenciou durante os interrogatórios; e também com os esgares e o tom histriónico que pontuaram o seu depoimento.
Mas os juízes são como nós: como nós, vêem televisão, acreditam, como nós, mesmo por impregnação, no que a televisão exibe, ficam convencidos, como todos nós estamos, quanto à culpa de José Sócrates, ou à ausência dela.
O problema que a exibição do interrogatório pela SIC nos apresenta não é apenas a de se fazer o julgamento na praça pública, contra as regras do contraditório e da defesa; é também a antecipação, pelo menos parcial, do verdadeiro julgamento que há-de decorrer no tribunal e do modo como se forma a convicção deste, determinante da sentença.

4 - Mas nem tudo é papel de actor, nem tudo é fantasia, o que a reportagem nos trouxe, na sequência de outras numerosas fugas de informação e violação do segredo de justiça.
Há muita coisa que já sabemos desses tempos, e que estava oculta; e cujo conhecimento não nos chega da boca de José Sócrates, ou de Manuel Pinho, mas de fontes isentas e imparciais.
(Ou também chega dessas mesmas fontes, como os telefonemas feitos por José Sócrates e escutados pela investigação, igualmente transmitidos - e aí já não em contexto de fragilidade ou de representação; apenas deprimentes.)
Já é possível – e, mais que possível, legítimo – nós, os cidadãos, fazermos a avaliação, no plano também político e moral, do que foram esses anos do Governo de José Sócrates e da estatura dos seus actores.
Têm razão os actuais dirigentes do PS: é uma vergonha que nos toca a todos.
E é também um susto; já que a rede de clientelas do bloco central que nos tem governado, à vez, nas últimas três décadas mantem as suas posições nos subterrâneos do nosso País.
Regozijo-me com o facto de dirigentes políticos que me habituei a respeitar, como António Arnaut e Ana Gomes, terem sido dos primeiros a pedir a barrela de higienização.
E espero que a conhecida modéstia bolchevique dos partidos que apoiam o Governo pela esquerda constitua um freio eficaz a tentações pós-socráticas.

P.S. – Teremos um Governo de legislatura e o Porto é campeão.
A Terra voltou a girar sobre o seu eixo.

Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)

 

Data de introdução: 2018-05-13



















editorial

NO CINQUENTENÁRIO DO 25 DE ABRIL

(...) Saudar Abril é reconhecer que há caminho a percorrer e seguir em frente: Um primeiro contributo será o da valorização da política e de quanto o serviço público dignifica o exercício da política e o...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Liberdade e Democracia
Dentro de breves dias celebraremos os 50 anos do 25 de Abril. Muitas serão as opiniões sobre a importância desta efeméride. Uns considerarão que nenhum benefício...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Novo governo: boas e más notícias para a economia social
O Governo que acaba de tomar posse tem a sua investidura garantida pela promessa do PS de não apresentar nem viabilizar qualquer moção de rejeição do seu programa.