1 - Creio que as pessoas do meu tempo, que andaram no liceu – como então se chamavam esses recomendáveis estabelecimentos do ensino secundário -, na década de 60 do século passado, ainda se lembrarão de um texto de Gonçalves Crespo, poeta parnasiano luso-brasileiro do século XIX, publicado nas selectas que então se usavam, sobre o mito da hospitalidade, a partir da história de Filemón e Báucis.
O texto reportava esse mito da Antiguidade Clássica, cujos traços essenciais se descrevem assim: Júpiter, o Pai dos deuses, e seu filho, Hermes, desceram, lá do Olimpo onde habitavam, a esta nossa Terra, deuses disfarçados de humanos, para se certificarem de como os contemporâneos cumpriam esse dever de acolher os estranhos, os de fora.
(A ciência dos deuses do Panteão era escassa, carecendo da experimentação e verificação concreta.
Não eram omniscientes.)
Os deuses não gostaram do que viram, com os egoísmos e a desconfiança relativamente aos outros a constituírem o padrão do comportamento dos homens, tão longe do valor da hospitalidade, que constituía um dever dentre os fundamentos dessa civilização antiga em que se alicerça a nossa.
Só um casal de pobres, Filemón e Báucis, os acolheu e recebeu em sua casa, repartindo com os disfarçados deuses, cuja verdadeira natureza ignoravam, o caldo e o pão da ceia e cedendo-lhes o leito para a pernoita.
Leonardo Boff, teólogo brasileiro ligado à Teologia da Libertação, e num registo de associação desse mito fundador dos valores da nossa civilização à actual crise de refugiados, resume assim essa edificante história que nos veio da Antiguidade anterior a Cristo: “Mas à noitinha passaram por uma choupana onde morava um casal de velhos, Báucis e Filêmon. Qual não foi a surpresa, quando Filêmon saiu à porta e sorridente foi logo dizendo: Forasteiros, vocês devem estar exaustos e com fome. Entrem, nós podemos colaborar. A casa é pobre mas aberta para acolhê-los. Báucis ofereceu-lhes logo um assento enquanto Filêmon acendeu o fogo. Báucis esquentou água e começou a lavar os pés dos andarilhos. Com os legumes e um pouco de toucinho fizeram uma sopa suculenta. Por fim, ofereceram a própria cama para que os forasteiros pudessem descansar. Nisso sobreveio grande tempestade. As águas subiram rapidamente e ameaçavam a região. Quando Báucis e Filêmon mesmo diante das limitações da idade quiseram socorrer os vizinhos, ocorreu grande transformação: a tempestade parou e de repente a pequena choupana foi transformada num luzidio templo dourado.”
Desvendada a essência divina dos forasteiros, e oferecendo estes ao acolhedor casal a satisfação de um desejo que formulassem, pediram Filemón e Báucis que lhes fosse concedido o privilégio de morrerem ao mesmo tempo.
Júpiter concedeu-lhes esse dom, transformando, muitos anos depois, e simultaneamente, Filemón num carvalho e Báucis numa tília, cujos ramos se interpenetravam, preservando a unidade desse casal virtuoso, mesmo depois da morte.
2 – A hospitalidade pode assumir, no entanto, uma face negra.
(Não se chama, nessa hipótese, hospitalidade, tratando-se apenas de uma aparência, ou um simulacro, dela.)
É o que poderemos filiar na fábula da aranha e da mosca e do convite formulado pela primeira à segunda: “entra na minha casa!” – e que é uma armadilha.)
Aqui é a sedução com que o convite é feito que convence – mas que conduz a pobre mosca a um triste fim; primeiro, aprisionada na teia; e, depois, esmagada e sugada pela aranha, do alto da sua posição dominante.
Ao longo dos anos, as Instituições Particulares de Solidariedade Social têm sido convidadas pelo Estado, designadamente pelo Instituto da Segurança Social, a entrar na sua casa, a comungar dos seus objectivos, a prosseguir, em colaboração recíproca, os seus desígnios.
Desde os idos de 2007, por exemplo - era José Sócrates o Primeiro-Ministro -, foram convidadas a participar na execução dos programas de inserção associados à medida do Rendimento Mínimo Garantido, celebrando desde então com o Instituto da Segurança Social os protocolos que têm sustentado essa colaboração.
Mais tarde, durante a gerência de Pedro Passos Coelho, foi a vez de instalar a RLIS – Rede Local de Inserção Social – em numerosos concelhos do nosso País, recorrendo o mesmo Instituto à rede de Instituições existente para a boa implantação dessa medida.
Como se vê, esses convites não dependem da natureza das soluções governativas, nem das respectivas opções em matéria de políticas públicas na área da protecção social.
Quer o PSD, quer o PS, sós, ou acolitados em sucessivas fórmulas de Governo, nos têm convidado para sua casa.
Para nos acolher: ou para nos asfixiar?
3 – A lei aprovada pela Assembleia da República na última sessão legislativa do ano parlamentar, relativa à descentralização de competências da Administração Central do Estado para o nível das autarquias locais inscreve-se no contexto de um tema recorrente no nosso Sector Solidário.
Há mais de 20 anos, era ainda Cavaco Silva Primeiro-Ministro, que este tópico da descentralização de competências para as autarquias locais constitui motivo de debate e inquietação no seio das Instituições de Solidariedade.
Tratava-se de um tema habitualmente levado aos programas de governo; mas que, por fas ou por nefas, nunca alcançava a luz do dia, terminando cada legislatura acomodado no fundo imenso das promessas não cumpridas.
A presença simultânea de António Costa como Secretário-Geral do PS e Rui Rio como Presidente do PSD, ambos vacinados contra o centralismo pela experiência comum como autarcas – um, presidente da Câmara de Lisboa, outro, da do Porto -, acabou por propiciar o desenterramento desse velho dossiê, objecto de um acordo escrito entre PS e PSD, e que culminou com a aprovação da lei no Parlamento e com a respectiva promulgação pelo Presidente da República, antes de partir para férias.
Não foi uma promulgação sem avisos e prevenções.
O Presidente da República considerou que a Lei ainda se encontrava muito imprecisa quanto às concretas formas e modalidades em que a dita descentralização poderá vir a realizar-se, deixando para a posterior densificação legislativa parcelar uma posição de eventual veto ou remessa para o Tribunal Constitucional, para apreciação da respectiva constitucionalidade.
Mas, pelo que li, fiquei com a impressão de que as dúvidas do Presidente incidem mais sobre a questão de saber se a dotação financeira prevista para acompanhar a transferência de competências e a correspondente reforma da Lei das Finanças Locais permitirão às autarquias assumir folgadamente tais novas competências.
Ora, a questão não é só essa.
Com efeito, mesmo para os que entendem recusar o imperativo constitucional da regionalização, como é o caso de Marcelo Rebelo de Sousa, a desconcentração, ou a descentralização, ou a delegação de competências, do nível central para o local, configuram ainda manifestação dessa pulsão de deslocação do exercício do poder para uma escala de proximidade que constitui também um dos fundamentos da regionalização.
Mas essa escala de proximidade é ainda mais sensível nas Instituições de Solidariedade do que nas autarquias, sendo certo que as competências conectadas com a RLIS e com a execução do RSI, que as Instituições hoje desenvolvem, se encontram elencadas no naipe das programadas transferências.
De modo que importa, a quem vier a preparar e apreciar os diplomas sectoriais que vão executar o modelo de descentralização, estar alertado para que esse intuito de transferência das funções do Estado para a escala de proximidade não venha a traduzir-se no sentido oposto: centralizando na área pública, conquanto local, o que já vem sendo desenvolvido a essa escala, mas ainda mais próxima, em subsidiariedade, pelas Instituições de Solidariedade.
À atenção do Senhor Presidente da República.
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
Não há inqueritos válidos.