HENRIQUE RODRIGUES

A tomada da Bastilha

1  Aproveitando a indulgência da data mais tardia do fecho desta edição, escrevo a presente crónica apenas no dia 14 de Julho, data em que se perfazem 230 anos sobre a Tomada da Bastilha, episódio desencadeador da Revolução Francesa – Revolução que marca a criação do moderno Estado de Direito, baseado no princípio de que todos os cidadãos são considerados iguais perante a lei, em dignidade e direitos.
A Revolução Francesa acabou, com efeito, com os privilégios de casta ou origem social, que estavam na base do Ancien Regime, estabelecendo, num documento fundador das democracias liberais, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que parte do pressuposto irrefragável da igualdade em direitos civis e políticos de todos os membros de uma comunidade.
São ainda essas regras de igualdade essencial entre os cidadãos que vieram mais tarde, já no século XX, marcar outro documento fundador para a compreensão do tempo que vivemos: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela ONU em 1948, que alarga a todos os membros da comunidade humana, seja qual for a latitude ou longitude onde vivam ou a nacionalidade que possuam, essa essencial igualdade de direitos determinada pelos revolucionários franceses de 1789 e, na sequência da Revolução Francesa, estendida aos principais países europeus nas décadas seguintes.
Em Portugal, como se sabe, foi a Revolução liberal de 1820, nascida no Porto, que acabou com o sistema de castas, ou classes, dotadas de privilégios fundamentados no sangue ou na ordenação eclesiástica, estabelecendo um país igual para todos, pelo menos em teoria, independentemente do nascimento ou do múnus sacerdotal.
Foi a Constituição de 1822 o documento legislativo supremo em Portugal que, pela primeira vez, instituiu a igualdade de todos os portugueses e sujeitou o poder real aos limites do sufrágio popular.
(Embora, como se sabe, de acordo com os cânones culturais da época, essa igualdade não abrangesse as mulheres, privadas dos direitos de participação na vida pública, em condições de igualdade com os homens, até há muito pouco tempo.)

2 – O materialismo histórico, que constituiu a ideologia dominante das elites intelectuais e do ensino durante praticamente toda a segunda metade do Século XX, justamente advertia de que a igualdade formal, “burguesa”, que caracterizava – e caracteriza ainda hoje, no que tem de virtudes e defeitos – as democracias liberais, não resolvia o problema de fundo da persistência e injustiça das desigualdades de classe, derivadas do regime de propriedade dos meios de produção pelos detentores do capital e da apropriação por estes do produto das mais valias resultantes da exploração da força de trabalho.
A falência do chamado “socialismo científico”, assente em pressupostos de trabalho intensivo, segundo o modelo da produção industrial clássica, dificilmente compatível com o desenvolvimento do capitalismo nas últimas décadas e com os efeitos reparadores do moderno Estado Social, não faz esquecer o fundado juízo desse modelo de explicação do devir histórico quanto ao efeito de exclusão do progresso e do bem estar material mínimo de largas camadas de cidadãos, que, além do lumpen- proletariado, não obstante disporem de um posto de trabalho, se encontram em estado de pobreza e exclusão.
É principalmente para estes que existem instituições particulares de solidariedade social, cuja actividade, no modelo português de protecção social, ancora o dever do Estado Social, digno desse nome, na correcção das desigualdades e na protecção dos mais fracos e mais desguarnecidos de apoio.
Com efeito, o primeiro dever das Instituições como as nossas, as que compõem o universo da CNIS, é o da integração na plenitude da participação na vida colectiva dos vários grupos de excluídos ou marginalizados: os pobres, as pessoas com deficiência, os velhos sós ou dependentes, os imigrantes, as minorias étnicas, raciais e religiosas, os refugiados, os menores em risco …
A este propósito, nos últimos dias, o debate público, com particular desenvolvimento na imprensa e nas redes sociais, gira em torno de um artigo da autoria da historiadora Fátima Bonifácio, no jornal “Público”, o qual, no fundo e no essencial, defende a doutrina da impossibilidade geral de integração no nosso modo de vida por parte de ciganos e afro-descendentes, portadores de valores civilizacionais que não seriam herdeiros da Declaração dos Direitos herdada da Revolução Francesa e seriam incompatíveis com a matriz cristã da civilização europeia.
As posições da autora do artigo têm sido – e ela própria também – alvo de condenação praticamente unânime, por dois motivos fundamentais: por não ser factualmente exacto o diagnóstico da desarmonia entre os valores dessas minorias e os que caracterizam, quer a herança da Revolução Francesa, quer a tradição cristã da Europa; e pela generalização a todo um grupo de determinadas características negativas, manifestadas por alguns membros desses mesmos grupos, num processo de contaminação que é alheio à responsabilidade individual e que não é, nem intelectual, nem moralmente, admissível.

3 – Não é esse o ponto, nem a perspectiva, que me levam a evocar a polémica; mas sim o facto de ela nos encaminhar para o que tem sido, ao longo de décadas, o punctus saliens do trabalho das Instituições de Solidariedade: as Instituições reproduzem o modelo social vigente, perpetuando desigualdades, embora amaciando os seus efeitos, numa perspectiva reparadora, depreciativamente apodada de “assistencialista” por sectores políticos hostis ao papel da economia social e solidária; ou promovem o desenvolvimento social e humano, numa visão progressista do trabalho social, aproximando os destinatários das suas acções do quadro de valores próprios da democracia liberal que felizmente nos enquadra e logrando a sua participação nas diversas instâncias da vida colectiva, com vista à sua plena integração na sociedade onde vivem – seja qual for a origem da sua desigualdade?
Tenho como certo que o carisma das Instituições se inscreve nessa segunda perspectiva – de que constitui bom exemplo o processo de acolhimento que Portugal levou a efeito, com a participação essencial das Instituições solidárias, relativamente aos refugiados fugidos da guerra no Médio Oriente, ou o trabalho diário que várias Instituições desenvolvem em bairros sociais problemáticos, de que constitui por sua vez exemplo o Programa “Escolhas”.
É por isso que as Instituições não podem ficar alheias a este debate: a defesa das posições identitárias exclusivas de alguns sectores da sociedade, por sua vez excludentes da diferença, colocam em causa o núcleo essencial das Instituições de Solidariedade – que consiste na contribuição para a construção de um País igual para todos.

4 – Claro que alguns meios políticos aproveitaram a maré (favorável) para o disparate: a cavalo nas inconveniências escritas por Fátima Bonifácio, já propõem uma discriminação positiva para ciganos, afro-descendentes e o mais que virá.
Trata-se de garantir, por exemplo, quotas prioritárias de ingresso nas universidades públicas.
Essa reivindicação surgiu ao mesmo tempo que os jornais noticiam, a tal propósito, que cerca de um terço das admissões nas Universidades públicas já abrangem contingentes especiais e preferenciais; que dizer, sem precisarem de nota de ingresso, como acontece com os alunos com acesso segundo as regras normais.
De forma que, se vingarem essas posições, poderá acontecer que um aluno do contingente geral, que fez laboriosamente o ensino secundário numa escola pública, e que já sofre a concorrência dos alunos que vêm de escolas privadas, com notas afeiçoadas à garantia do ingresso, e vê um terço dos lugares de ingresso ocupados por estudantes que podem ter pior classificação do que ele, verá ainda mais diminuída a sua margem de acesso pelas novas quotas para minorias étnico-religiosas.
Querem mais quotas? Então criem-nas para estudantes do sexo masculino nas Universidades ou para homens na judicatura, onde a presença do antigo sexo forte tende cada vez mais para a insignificância.

Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)

 

Data de introdução: 2019-07-17



















editorial

NO CINQUENTENÁRIO DO 25 DE ABRIL

(...) Saudar Abril é reconhecer que há caminho a percorrer e seguir em frente: Um primeiro contributo será o da valorização da política e de quanto o serviço público dignifica o exercício da política e o...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Liberdade e Democracia
Dentro de breves dias celebraremos os 50 anos do 25 de Abril. Muitas serão as opiniões sobre a importância desta efeméride. Uns considerarão que nenhum benefício...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Novo governo: boas e más notícias para a economia social
O Governo que acaba de tomar posse tem a sua investidura garantida pela promessa do PS de não apresentar nem viabilizar qualquer moção de rejeição do seu programa.