O anúncio do projeto Libra pela Facebook colocou o dinheiro eletrónico e as tecnologias que o suportam num novo patamar de interesse público.
Tenho para mim que o ascenso do dinheiro eletrónico é um facto da vida, uma tendência imparável.
Em que é que o dinheiro eletrónico vai ser diferente daquilo que fazemos e usamos hoje?
Atualmente a maioria das pessoas utiliza dinheiro físico (notas e moedas) para pagamentos de pequeno valor, usa cartões de débito ou crédito para pagamentos de valor um pouco maior e, nos casos de montante mais elevado, recorre a transferências bancárias ou cheques.
Tudo isto assenta num sistema de pagamentos providenciado pelos bancos e sobre a forma mais comum de dinheiro que são os depósitos bancários.
Os depósitos bancários são vistos pelas pessoas como equivalentes ao dinheiro físico. Em tempos normais dinheiro e depósitos são convertíveis, podemos transformar depósitos em notas e moedas.
Todos sabemos que se, num determinado momento, todos os depositantes de um banco quisessem “levantar” o seu dinheiro, o banco simplesmente não poderia aceder a todos os pedidos.
Mas nem por isso deixamos de confiar. A sensação de segurança em relação aos depósitos vem da confiança na solidez dos bancos, do crédito concedido aos supervisores e, em casos limite, de um seguro que garante os depósitos até um certo montante mesmo em caso de falência do banco.
O dinheiro eletrónico apenas existe enquanto registo num qualquer sistema informático e não pode tomar qualquer forma física como notas ou moedas.
Se, amanhã, a Facebook criar a Libra não existirão notas ou moedas de Libra. As carteiras e os porta-moedas serão obsoletos. A nossa carteira passará a ser o nosso telemóvel.
Na ausência dessa convertibilidade em dinheiro físico, não podendo por as mãos em cima do dinheiro, o que pode dar confiança aos utilizadores?
A base dessa confiança vai estar nos ativos que a entidade que gere o dinheiro eletrónico tiver como contrapartida.
Voltando ao caso da Facebook, a Libra terá valor porque por cada Libra a circular a entidade que gere o sistema terá o mesmo montante em títulos de dívida do estado de curto prazo, depósitos em bancos, outros ativos de alta liquidez, provavelmente expressos nas moedas principais mundiais, seja dólar, euro, libras, francos suíços, etc.
Claro que há riscos. Os ativos que a Facebook vai comprar podem perder valor, existem flutuações cambiais, podem ser pouco líquidos e, em tempos de stress, difíceis de converter em dinheiro “real”, por exemplo, depósitos bancários.
Mas, se também no dinheiro eletrónico há riscos, porventura maiores que no dinheiro convencional, quais as vantagens do dinheiro eletrónico? Porque acredito que vai ser a norma?
Acontece que o dinheiro eletrónico tem muitos atrativos.
Desde logo é mais barato. O sistema de pagamentos que os bancos providenciam é caro. Pagamos pela manutenção das contas bancárias, pagamos por cada transferência que fazemos e, nos movimentos transfronteiriços, pagamos caro e o sistema é tudo menos eficiente.
O dinheiro eletrónico pode circular virtualmente sem custos entre as “carteiras” dos utilizadores e tem clara vantagem de eficiência e custo nos movimentos internacionais.
O dinheiro eletrónico é de utilização mais simples, mais conveniente e está integrado nas vidas digitais dos cidadãos comuns. Se for emitido por redes sociais nas quais as pessoas estão inseridas é fácil perceber a conveniência de usar o mesmo modelo para conversa, transação de fotos ou mensagens e fazer pagamentos ou recebimentos.
O dinheiro eletrónico pode ser mais confiável que o dinheiro convencional. Uma das razões do enorme sucesso do M-Pesa no Quénia foi o facto dos cidadãos, nomeadamente os mais pobres, confiarem mais na empresa de telecomunicações na base do M-Pesa, a Vodafone, que nos bancos locais.
A China é talvez o país onde o dinheiro eletrónico está mais difundido. Os maiores operadores são a Alipay da Alibaba, o gigante do comércio eletrónico, e uma operação similar da Tencent que é uma operadora de jogos online. Foi a integração do dinheiro com a vida digital dos cidadãos (compras online, jogos) que permitiu a estas empresas criar sistemas de pagamentos que hoje são pervasivos.
No caso da China a questão da confiança foi resolvida de forma muito simples. As operadoras são obrigadas a ter por cada unidade de conta em circulação o mesmo montante em depósitos no banco central – mais seguro é impossível.
Finalmente o dinheiro eletrónico pode usufruir das chamadas externalidades de rede.
As externalidades de rede explicam, por exemplo, que a Facebook ou a Google se tivessem transformado em monopólios naturais. Se os meus amigos estão na Facebook é natural que eu também queira lá estar. Se os meus amigos e aqueles com quem tenho interação regular estão numa determinada rede social é natural que tenda a utilizar o sistema de pagamentos providenciado por essa rede social para interagir com eles.
Para além de ser mais barato, mais simples, não necessariamente menos seguro que o dinheiro como o conhecemos hoje, o dinheiro eletrónico tem a enorme vantagem de estar inserido na forma como hoje muita gente vive as suas vidas – em cima de plataformas digitais.
No fim das contas pagar e receber são mais um aspeto do nosso viver social, uma forma de interação entre seres humanos.
O dinheiro eletrónico pode tornar esse viver social mais simples, barato e divertido. Com o dinheiro eletrónico podemos enviar emojis, mensagens, fotos ou comentários, coisas que não podemos fazer com cartões de crédito ou débito.
O projeto Libra pode até nem ir muito longe. A receção, nomeadamente pelas autoridades financeiras, tem sido tudo menos entusiástica.
Há boas razões para esta escassez de entusiasmo. A Facebook tem um histórico miserável em termos de privacidade e utilização da informação pessoal dos utilizadores. Se não souberam guardar simples informação pessoal saberão guardar dinheiro?
Os modelos de pagamento geram informação valiosa sobre o perfil pessoal dos utilizadores. Quem garante a segurança dessa informação? Quem garante que a Facebook não a usa para fins comerciais?
Qual a segurança em matéria de prevenção de financiamento ao terrorismo ou lavagem de dinheiro?
Quem garante a estabilidade do valor da Libra? Que tipo de regulação será aplicada?
Muitas perguntas e poucas respostas. Talvez o projeto Libra acabe por cair. Mas outros virão – o caminho é inevitável.
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