Vivemos num tempo em que a consequência da dinâmica “natural” do capitalismo é o crescimento da desigualdade na distribuição da riqueza, do rendimento e das oportunidades. Se deixarmos o capitalismo entregue a si mesmo, inexoravelmente, a desigualdade aumenta.
Nos países em que se dispõe de informação estatística razoavelmente segura a evidência empírica é esmagadora.
Nos Estados Unidos, país para o qual dispomos das melhores estimativas, os 0,1% mais afortunados, que nos anos 70 do século passado detinham 6 a 7 % do total da riqueza, atualmente são donos de cerca de 20% (o triplo). Para Portugal não disponho de números fiáveis, contudo, usando os dados disponíveis da Global Wealth Distibution publicados pelo Credit Suisse, posso imaginar que a concentração da riqueza no nosso país não deverá ser muito diferente da verificada nos Estados Unidos.
O caso para a intervenção das políticas públicas na correção do desequilíbrio, parece sólido.
Um dos domínios das políticas públicas que é convocado para o efeito é o das políticas fiscais.
Não há grande coisa para inventar neste campo. A justiça fiscal faz-se com progressividade na tributação do rendimento e com a tributação da fortuna.
O registo, nesta matéria, nas economias de capitalismo avançado nas décadas posteriores aos anos 80 do século passado é terrível.
Em relação ao rendimento, até aos anos 80 do século passado, a taxa marginal de tributação andava nos 70% ou mesmo mais. Atualmente nos Estados Unidos é de 37%. Em relação aos lucros das empresas muitos países praticavam taxas marginais de 50% - atualmente nos Estados Unidos é de 16%.
Em relação à tributação da fortuna ela praticamente desapareceu – atualmente, na Europa, apenas quatro países a praticam e, ainda assim, numa escala reduzida.
A forma mais comum de tributação da fortuna é a tributação das heranças, mas, mesmo essa, foi abolida em muitos países como é o caso em Portugal.
Gostaria hoje de dedicar algum espaço ao tema da tributação da fortuna.
Os argumentos tradicionais contra a tributação da fortuna são: a) - dupla tributação (a fortuna de hoje é rendimento do passado e já foi tributada enquanto tal. Assumindo que a fortuna se fez com rendimentos elevados pode ter sido fortemente tributada); b) – ineficácia, no sentido em que diferentes modelos de evasão fiscal levarão a cobranças reduzidas.
A conclusão política geral sobre o tema é que a tributação da fortuna é controversa e rende pouco fiscalmente, ou seja, tem custos políticos muito altos para pouca receita fiscal. Os políticos fogem dela como o diabo da cruz.
Tanto quanto sei, em Portugal, apenas o Partido Comunista tem propostas claras de tributação da riqueza embora, mesmo o PCP, não chegue ao ponto de propor uma tributação generalizada e sistemática das fortunas. O que o PCP propõe é a tributação em 0,5% anual do património mobiliário (depósitos bancários incluídos) acima de 100.000 euros.
Tributar a fortuna é algo de mais complexo e mais abrangente. Concretamente trata-se de aplicar um imposto sobre o total do património da família, incluindo ativos financeiros mobiliários, quotas em sociedades e património imobiliário. Naturalmente que só é tributável o património líquido, ou seja, caso existam dívidas elas serão deduzidas à base de aplicação do imposto
Se existe uma preocupação de justiça, apenas os patrimónios mais elevados serão objeto de tributação.
Com base nos dados da Global Wealth publicados pelo Credit Suisse, existirão em Portugal 94.233 patrimónios de valor superior a 1 milhão de euros a maioria dos quais, 84.716, concentrados no escalão inferior a 5 milhões.
Ou seja, os patrimónios acima de 1 milhão de euros em Portugal constituem uma base tributável de algumas centenas de biliões de euros pelo que, mesmo uma taxa de tributação reduzida, daria lugar a uma receita não despicienda.
Um dos argumentos contra a tributação da fortuna é a existência de alguma correlação entre a tributação da fortuna e a tributação do rendimento, ou seja, grandes fortunas estão associadas a grandes rendimentos logo é quase indiferente fazer a justiça fiscal pela progressividade da tributação do rendimento ou tributar a fortuna de “per se”.
Contudo, não é garantido que detentores de grandes fortunas tenham necessariamente uma conta gorda de IRS.
Imaginemos alguém que tem uma fortuna considerável em ações de empresas, digamos 6 milhões de euros em ações cotadas. Imaginemos também que essas ações dobraram em valor nos últimos 2 anos, ou seja, em cada ano a riqueza cresceu 1,5 milhões de euros.
Pode acontecer que o detentor deste património não tenha pago qualquer IRS. Basta para isso que, como muitas vezes acontece, as empresas não tenham distribuído dividendos. Mesmo que os tenham distribuído, como eles são tributados a uma taxa preferencial, a conta de IRS pode ser bastante curta, pelo menos quando comparada com a dimensão do património.
Como não é fácil rebater a ideia da tributação da fortuna com base em critérios morais, os argumentos contra são, em geral do domínio da praticabilidade. Há muitas formas de fugir – vamos comprar um problema político gigantesco para, no final, cobrar poucos impostos.
Há, de facto, muitas formas de fugir.
Por exemplo, se só são tributados os patrimónios acima de um certo montante, digamos 1 milhão de euros, então vamos ver muitas declarações de riqueza na casa dos 900.000 euros.
Experiências de países que introduziram (ou mudaram) patamares de riqueza para efeitos de tributação, mostram que as pessoas fazem o que podem para colocar o património abaixo do limite mínimo. Contudo, essas experiências também mostram que o impacto global nos patrimónios declarados não é muito grande.
Depois é possível esconder riqueza em off-shores. Esse é um recurso que só está à disposição dos muito ricos. Calcula-se que 75% da riqueza escondida em off-shores pertença aos 0,1% mais ricos.
Contudo, aqui a vida está cada vez mais difícil para os que pretendam fugir aos impostos. Os países que se furtam a partilhar informação com as autoridades fiscais dos contribuintes são cada vez menos. Fisco eficiente do lado dos países de origem e partilha de informação com os países de destino não resolvem tudo, mas ajuda!
Outra possibilidade é a expatriação. Sabemos que muitos ricos e famosos escolhem a sua residência em função de critérios fiscais e, em particular, da tributação da riqueza.
O combate a esta forma de evasão depende da vontade política dos países.
Por exemplo, nos Estados Unidos quem quiser mudar a residência fiscal tem de renunciar à cidadania americana – dá para pensar duas vezes.
Em suma, a tributação da riqueza é justa num mundo onde a desigualdade está a atingir níveis preocupantes. Não é um tema simples, só funcionaria bem se muitos países aderissem a um qualquer modelo de tributação da riqueza e se os Estados levassem a sério a repressão às formas (muitas) de evasão.
A mim custa-me a aceitar que se deixe cair o tema só porque é difícil e porque pode ter custos políticos.
Para o fim uma curiosidade: dois dos homens mais ricos do mundo, Bill Gates e Warren Buffett, já declararam publicamente que apoiam a tributação da fortuna. Sinal dos tempos!
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