1 – Pela primeira vez em 35 anos, não poderei este ano acompanhar a rebentação das minhas videiras, vigiar a implantação dos gamões ao longo das varas, remover os rebentos-ladrão que diminuem a aptidão produtiva, amparar e aramar as varas produtivas, preparar, na vinha, a próxima colheita – tudo tarefas que costumo reservar para mim próprio, quer pelo princípio arreigado no mundo rural de que o dono é o que melhor cuida do que é seu, quer pelo postulado maoista de que é mister os trabalhadores intelectuais meterem a mão na massa e exercerem trabalho braçal, ou manual, para arredar tentações pequeno-burguesas.
Também me será vedado, por determinação administrativa e por amor à vida, averiguar se finalmente as cerejeiras que plantei nos últimos anos me deixam provar o seu fruto rutilante, depois de os melros cobrarem justificadamente as suas primícias.
(“E o melro entretanto,/ Honesto como um santo,/ Mal vinha no oriente/ A madrugada clara,/ Já ele andava jovial, inquieto,/ Comendo alegremente, honradamente,/ Todos os parasitas da seara/ Desde a formiga ao mais pequeno inseto./ E apesar disto o rude proletário,/ O bom trabalhador,/Nunca exigiu aumento de salário.” – Guerra Junqueiro, O Melro, in “A Velhice do Padre Eterno”)
Da mesma forma, na Primavera que por estes dias enganosamente entrou no calendário, não cheirarei o perfume da flor das laranjeiras que tenho plantado nas bordas do Tâmega, e cujos frutos pedem meças em doçura aos do Algarve, do Tua ou da Pala.
Também suspeito não poder, no tempo próprio, colher as framboesas silvestres que constituem um dos motivos de orgulho da minha condição de lavrador.
São estes tempos, na verdade, tempos que nos fazem mossa, e que perturbam a ciência certa que antes detínhamos, sabendo como seria o dia de amanhã – e de depois de amanhã, e por todos os séculos ...
Pensávamos que eramos donos e senhores do tempo, do futuro, do progresso, dos amanhãs luminosos – e eis que um pequeníssimo vírus põe em cheque todo o nosso poder sobre as coisas e sobre o mundo.
Agora, na verdade, o nosso mundo mudou – e nunca mais será o mesmo.
Muitos de nós partiram para um “destino enigmático”, como lhe chamou Fernando Echevarría: “Como a atmosfera brilha/ no sítio onde passaram/ os mortos. Todos os dias/ azáfama e recados/ passam ali. Até a família/ se apressa para o campo./ Mas não importa. Cada lugar que esfria/ acorda os mortos. Estremunha os páramos./ E acrescenta o amor. E a vigília/ dos raros vivos por que nós passamos” (“Sobre os mortos”)
2 – Mas há coisas que não mudam nunca, mesmo nestes dias “incertos muito mais que ao vento as naves” (Sá de Miranda, soneto “O sol é grande … “).
Durante a semana passada, a Directora-Geral da Saúde deixou com inocência cair a informação, numa daquelas conferências de imprensa diárias com que o Governo e a Direcção-Geral da Saúde glosam com inútil redundância as informações da evolução da pandemia no nosso País, de que o Governo, em conjugação com as autoridades de saúde, iria decidir nesse mesmo dia o estabelecimento de uma cerca sanitária à cidade do Porto, tendo em conta um aumento imprevisto e substancial do número de casos de infecção na cidade, de um dia para o outro.
Tal ameaça não se veio a cumprir, por duas razões:
Em primeiro lugar, por ser falsa a informação do tal aumento imprevisto e substancial do número de casos.
Que fora engano… e que, afinal, o número de casos era só de metade do anunciado…
Em segundo lugar, por o Presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, ter ele próprio denunciado o erro de contagem do Ministério da Saúde, declarando não reconhecer legitimidade ao Poder Central para o estabelecimento da dita cerca sanitária, restrita ao município do Porto, sem antes ouvir os legítimos representantes da cidade.
Passando ao largo do facto perturbador de, num quadro de extrema exigência como o que vivemos, ser possível erro tão grosseiro, e de com base nele se preparar uma decisão tão danosa, sem concertação prévia com a cidade do Porto, ainda esperei para ver se, no dia seguinte, e depois de rectificada a contagem efectiva dos infectados, com Lisboa em primeiro lugar, alguém se lembraria de sugerir a cerca sanitária da capital.
Foi sem espanto que verifiquei que tal não aconteceu – e ainda bem, pois certamente as razões que arredavam essa necessidade para o Porto se repetiriam para Lisboa.
Mas o ponto não é esse: o ponto é a displicência com que se encara fechar o Porto do resto do País, à sombra de um lapso; e de ter com a capital outra delicadeza e outros escrúpulos.
Não seria a primeira vez em que o poder lisboeta determinaria o cerco do Porto, contra a vontade desta cidade.
Em 1899, o Governo progressista de José Luciano de Castro decretou o cerco sanitário do Porto, então vítima da peste bubónica – contra a opinião do portuense Ricardo Jorge, médico municipal do Porto (que emprestou o nome a uma rua contígua aos Paços do Concelho do Porto), de onde saiu para organizar, em Lisboa, a Direcção-Geral da Saúde.
E nas lutas liberais, igualmente o Rei D. Miguel, da facção absolutista, e defensor dos privilégios do trono e do altar, cercou a cidade onde se encontrava sedeado o Exército Libertador, sob o comando do seu irmão, o Rei D. Pedro IV, da facção liberal, cuja vitória sobre os sitiantes permitiu consolidar o regime de democracia liberal em que vivemos desde 1836, com a Carta Constitucional, na sequência da portuense Revolução de 24 de Agosto de 1820, que impôs ao Regente, futuro Rei D. João VI, o regime da democracia representativa, fundado no voto os cidadãos.
O Porto não é cidade para ser cercada por fora; só por dentro, e por decisão e para defesa própria.
3 – Tem merecido, justificadamente, a unanimidade do País o reconhecimento da dívida que todos nós contraímos relativamente aos médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, trabalhadores auxiliares de saúde, que estão, com risco da saúde e da própria vida, na primeira linha do combate à pandemia, assegurando aos doentes a humanidade possível neste transe.
Também me associo a essa gratidão.
O Governo, e bem, equiparou recentemente os trabalhadores dos estabelecimentos residenciais de apoio social e do apoio domiciliário aos trabalhadores da saúde, na definição dos serviços essenciais de funcionamento impreterível.
Os trabalhadores destas estruturas bem merecem também o reconhecimento da comunidade pelo papel que o actual contexto lhes conferiu: também eles correm diariamente riscos superiores à generalidade dos trabalhadores; também eles estão na primeira linha.
Também eles estão sujeitos a uma pressão muito intensa, a cargas horárias imprevistas, ao sacrifício do convívio familiar.
Espero que, vencida a crise, ninguém esqueça, a começar pelo Governo, a nobreza desse trabalho.
Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)
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