FERNANDO RUAS, PRESIDENTE DA ANMP

Onde há promotores privados, as autarquias não se devem meter

Fernando de Carvalho Ruas tinha acabado o curso de Economia, na Universidade de Coimbra, há pouco tempo. Depois de uma passagem efémera pelo ensino recebeu um convite para director do Centro de Educação Especial de Viseu. Tentou declinar a responsabilidade, alegando falta de tempo, de jeito e de conhecimentos, mas as circunstâncias da vida impuseram-lhe o que alguns consideravam ser apenas um cargo. Esteve cerca de cinco anos à frente do CEE. "Foi um período marcante para a minha personalidade. Hoje eu era outra pessoa se não tivesse tido essa experiência e esse envolvimento." Nunca mais se havia de esquecer desse contacto com a deficiência mental.
Depois, seguiu o caminho da política, embarcando no PSD. Chegou a Presidente da Câmara de Viseu em 1990 e mantém-se ao leme da autarquia desde então. É Presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses desde 2002, desempenhando também múltiplas funções associadas à vida municipal, nacional e partidária.



Solidariedade - A Associação Portuguesa de Deficientes tem denunciado que o decreto-lei que obriga os edifícios públicos a derrubarem todos os obstáculos que dificultam o acesso e a utilização aos portadores de deficiência não foi tomado a sério pelo Estado e pelas câmaras. E isto ao cabo de sete anos. Qual é a quota parte de responsabilidade da ANMP neste processo? O que é que pode e deve ser feito?
Fernando Ruas
- Há uma coisa que se pode fazer. Nós, os municípios temos que dar o exemplo. As câmaras têm que adaptar os seus edifícios, mas é obvio que há outros que são da tutela do governo central e têm que ser os serviços a adaptá-los. Não são da nossa responsabilidade. Eu não conheço a realidade toda do país nesta matéria, mas conheço bem a realidade do meu concelho. O problema da deficiência é um problema de interiorização por parte dos decisores. Há muita gente que está à margem desta problemática. E para esses o problema não existe. Numa colaboração que fiz com a Associação Portuguesa de Deficientes, há uns tempos, tive ocasião de dizer que as barreiras maiores são as da mentalidade. Eu sei que as barreiras físicas devem ser abolidas, mas previamente devíamos tentar derrubar as da mentalidade. E muitas vezes não são sequer assumidas pelos decisores. Trata-se de uma questão de desconhecimento. E eu sei isso por experiência própria. No meu percurso de vida profissional tive que lidar com a deficiência e devo dizer que mudei muito do meu comportamento a partir daí. 

Solidariedade - O que está a dizer dá razão a quem considera que por vezes existe uma parcela da sociedade invisível, neste caso os deficientes...
Fernando Ruas
- Exactamente. Sabe que eu gosto muito de uma expressão que os espanhóis usam para caracterizar os deficientes. Não lhes chamam deficientes mas "menos válidos". Eu acho que é gente que em determinada altura tem uma redução de uma qualquer capacidade. Mas continuam a ser os mesmos cidadãos. Em relação ao decreto-lei, eu presumo que o mal foi o período tão longo que se deu e depois não ter havido bases intermédias em que fosse chamado à atenção o incumprimento. Muitas das pessoas quando saiu o decreto-lei, se calhar, não eram decisores. A meio da sua vigência o decreto podia ter pontos de alerta. Foram sete anos para se modificar e pouco se fez. Muito do problema reside aí. Mas digo-lhe uma coisa: a sociedade não tem parado e, embora a resposta seja insuficiente, há cada vez mais gente mentalizada para a problemática dos deficientes. Eu dou apenas um exemplo do que se passa na minha cidade: nós fizemos um apoio com a associação de cegos - e as câmaras podem fazê-lo com financiamentos, que estão definidos em função do número de habitantes; nós fizemos a iluminação de todos os lancis de acesso nos sinais luminosos, tudo isso foi adequado; fizemos a adaptação de todos os edifícios que foram construídos depois da saída da legislação, já não têm estes inconvenientes - vou inaugurar em breve uma escola que é um modelo em relação à adaptação para deficientes. Quanto aos edifícios públicos eles não são fáceis de adaptar e às vezes as adaptações são contestadas pelos próprios deficientes. Fazem críticas e possivelmente pertinentes. Por exemplo, o edifício dos Correios, aqui em Viseu, tem uma cadeira-de-rodas mas não funciona, ninguém a utiliza, mas está lá. 

Solidariedade - O que está a referir é que este problema não se resolve por decreto-lei?
Fernando Ruas
- De facto não. Resolve-se com muitas iniciativas por parte dos cidadãos e nomeadamente por parte dos cidadãos deficientes. Devem fazer iniciativas públicas que vão atrair cada vez mais adeptos. Estou convencido que é relativamente fácil ganhar toda a gente para esta causa. As pessoas têm é que saber, de resto não haverá ninguém que não dê razão aos deficientes... 

Solidariedade - Mas também é fácil esquecer esta causa, como se tem visto...
Fernando Ruas
- Por isso é que acho que deve haver muitos sinais para nos irem lembrando desta problemática. As câmaras municipais ainda estão aquém do melhor que podiam fazer, mas vão fazendo o seu trabalho. Eu recordo-me que recentemente, muitas autarquias foram galardoadas pela Associação Portuguesa de Deficientes numa cerimónia pública em Lisboa. Houve o reconhecimento de que câmaras de todo o país estão a fazer um esforço e destacaram-se nesse apoio. 

Solidariedade - De que forma é que a ANMP pode incentivar e incutir nas autarquias a necessidade de prestarem mais atenção aos deficientes, nas dificuldades de cariz arquitectónico?
Fernando Ruas
- Pode sensibilizar com acções conjuntas com associações de deficientes através da realização de colóquios, seminários e iniciativas que dêem visibilidade. Vou-lhe lembrar uma questão que parece de pormenor, mas não é: no ano passado nós fizemos uma grande acção com cidadãos deficientes. E foi tão simples quanto isto: recebemos postais de uma associação de deficientes, seleccionámos os melhores e integrámo-
-los no nosso postal de Natal. Eu chamei os autores que foram premiados numa cerimónia feita aqui na Câmara da Viseu. Estas iniciativas, tenho a certeza, podiam multiplicar-
-se. Este problema tem muito a ver com o conhecimento, com a interiorização, com a consciencialização da parte de quem decide.

A ANMP E AS IPSS

Solidariedade - Como é que define o estado actual das relações entre a ANMP e as Instituições de Solidariedade?
Fernando Ruas
- É normal porque as câmaras têm que ter relações com as instituições, mas ele podia ser facilitado através de um mecanismo que a ANMP reclama há muito tempo. Todos os ministros da tutela sabem desta reivindicação. Sempre que reunimos falamos disto. Tem a ver com o Conselho Local de Acção Social, o CLAS, é algo que nós achamos fundamental para ordenar e articular as políticas de acção social. É um organismo que tem por função sentar à mesa os operadores na área da acção social de um concelho para articular medidas. Nós corremos o risco de andar a fazer iniciativas desgarradas e às vezes repetidas. A Carta Social depende muito mais do somatório de iniciativas de um ou outro promotor do que de uma certa racionalidade. Isto é extensivo também às respostas aos idosos e às crianças. O que se vê um pouco por todo o país é fazerem-se jardins de infância ou lares de idosos e depois andam carrinhas a irem buscar as crianças e idosos. É um problema de falta de planificação na chamada Carta Social. O que se devia exigir era que a Rede Social tivesse algum critério, evitando duplicações e lacunas, que não fosse apenas o somatório de iniciativas, louváveis, mas desgarradas que os cidadãos vão tendo. 

Solidariedade - Há quem defenda que devia haver uma maior municipalização da acção social. É o seu caso?
Fernando Ruas
- É. Aliás nós dizemos que isso se insere no âmbito da descentralização de atribuições e competências, que nós defendemos. Veja o exemplo dos deficientes: mesmo que não seja no tratamento do deficiente, em si, veja-se a questão da decisão da construção dos equipamentos. Quem melhor do que um município está em condições de dizer que é preciso um equipamento A ou B para resposta a este tipo de cidadãos? É imperioso que isto venha do poder central? O princípio da subsidiariedade deve prevalecer e é ao município que compete a planificação. 

Solidariedade - A autarquia deve substituir o Estado e também a iniciativa dos cidadãos?
Fernando Ruas
- Deve articulá-las. Por isso é que eu defendo esse Conselho Local de Acção Social que deve ser presidido pelo Presidente da Câmara ou seu substituto e tem que reunir periodicamente, de acordo com a legislação subjacente, com quem tem a seu cargo a problemática da acção social, de modo a criar sinergias, de forma a evitar que se andem a desperdiçar recursos, sobretudo que se articulem as medidas e as políticas. 

Solidariedade - O que se verifica neste momento é a existência de algum desajustamento. Há zonas que têm equipamentos a mais e população a menos e vice versa. O que está protocolado é que as câmaras tenham um papel de planeamento e articulação...
Fernando Ruas
- Não está protocolado é dessa forma tão explícita, como nós pretendemos no CLAS. Esse desajustamento é a nível do território nacional, mas não contando com uma outra realidade que vamos ter dentro de pouco tempo, que é o regresso de cidadãos emigrantes que vêm também numa situação em que é necessário dar-lhes respostas. E nós não estamos a contar com isso. Aquilo que me parece que é importante, no que respeita ao planeamento, é a determinação da tendência. Nós devemos ser capazes de perceber se vamos ter mais idosos nesta ou naquela zona; se vamos ter mais ou menos crianças daqui a uns anos... Às vezes corremos o risco, como aconteceu com os POLIS, de construir equipamentos que depois ficam sub-ocupados, e é o pior que pode acontecer. Temos que ser rigorosos e perceber a tempo se determinado equipamento deve ou não ser ali construído, com que dimensão, dirigido a quem, com que função... O pior que pode acontecer é a construção de edifícios de grande nobreza e depois termos que andar atrás de gente para os ocupar. Tem que ser ao contrário. Eu conheço exemplos ao nível da infância em que se fizeram jardins e depois tem que se projectar um sistema de transporte para ir buscar miúdos a sete ou oito quilómetros de distância. Eu acho isto evitável. Os municípios têm que ter uma palavra activa neste planeamento e articulação de políticas. É uma questão de conhecimento. Não é possível eu não saber o que se passa nesta ou naquela IPSS, o que é que está a fazer, que relação é que tem com a autarquia, com a junta de freguesia... 

Solidariedade - Considera que o Estado devia passar algumas competências para as Câmaras Municipais? Quais?
Fernando Ruas
- Claro. Muitas competências. A própria decisão de construir o equipamento podia passar para o nível municipal, através do CLAS. A parte positiva é que normalmente a iniciativa vem dos promotores sociais. Não é tão estatizado. A gente sabe que a promoção, seja a que nível for, mas sobretudo no campo social, amplia as vontades, a gestão e está impregnada de um altruísmo enorme... 

Solidariedade - Considera que, por exemplo, a atribuição de subsídios que estão protocolados devia ser feita a nível municipal?
Fernando Ruas
- Podia ser. Como sabemos há injustiças que podiam ser corrigidas. Há contratos em que consta determinado valor e a Instituição tem muito mais gente e também acontece o contrário. São situações muito mais facilmente vigiadas pelo tal Conselho. Sabe, mete-me impressão que um contrato-programa, assinado com uma instituição seja feito por 20 e obriguem os promotores a ter lá 30. Tem é que se definir que determinada instituição só comporta um determinado número de utentes e não se deve deixar ter mais. Não é justo que se promova a sobrelotação e depois se diga "só podemos fazer o acordo de colaboração para 20 utentes", mas, entretanto, a Instituição já lá tem 30. Também aqui os CLAS podiam dar uma óptima contribuição. É a realidade local, vivida aqui. 

Solidariedade - Há quem advogue que as próprias autarquias deviam ser promotoras. O que pensa disso?
Fernando Ruas
- Algumas têm-no feito. Mas neste como noutros campos onde houver promotores privados as autarquias não se devem meter. Nós temos promotores de grande qualidade, gente que se dedica a esta problemática de alma e coração, temos nas igrejas os párocos e os centros paroquiais que são excelentes promotores e nós temos é que aproveitar esta força, esta sinergia e este altruísmo. Quando não, estatizamos e municipalizamos tudo, e não me parece que seja o melhor caminho. O que deve baixar é o poder de decisão aplicando-se o princípio da subsidiariedade. É necessário e útil. Porque é que nessa matéria tem que ser Lisboa a tomar decisões sobre o meu concelho, por exemplo? 

Solidariedade - Essa descentralização é uma vantagem. Mas as desvantagens também podem ser muitas, como o controlo político e a tendência discricionária. Os promotores sociais ainda são vistos como bons instrumentos políticos.
Fernando Ruas
- Sim, mas isso também pode ser feito a nível nacional, pelos governos. Dou-lhe o meu exemplo. Se eu atribuir um subsídio eu tenho uma série de possibilidades de ser controlado: os vereadores da oposição; as actas da reunião; a Assembleia Municipal... Se for o governo a atribuir o mesmo subsídio quem é que fiscaliza? Se neste momento for atribuído, pelo executivo, a uma qualquer instituição, um subsídio do Fundo de Socorro Social a maioria dos cidadãos nem sabe que isso existe. Vem de Lisboa, via Centro Regional de Viseu e é entregue a uma instituição de uma pequena aldeia de ... sei lá!... de Resende. Quem é que sabe? 

Solidariedade - Para se prever as necessidades futuras no âmbito do social, disse há pouco que é importante determinar as tendências. Há algum estudo promovido pela ANMP para avaliar o sentido dos investimentos humanos, técnicos, materiais e financeiros nos tempos próximos?
Fernando Ruas
- Não, dessa forma tão sistemática não haverá, mas é relativamente fácil de perceber. Por exemplo, se há matéria que nos tem e nos vai preocupar é a parte da acção social. Os municípios estão neste momento numa fase curiosa porque estão a acabar as infra-estruturas básicas. Até aqui a principal preocupação era fazer as estradas, saneamento, abastecimento de água, tratamento do lixo... Estamos numa fase de conclusão. Não em todas as câmaras mas em grande parte delas. A questão do apoio à população mais carenciada é agora uma das prioridades. O apoio aos deficientes, à terceira idade, à infância, aquilo que eu chamo preocupações no domínio da qualidade de vida. Questões ambientais, de educação, de acção social, desportivas, culturais, matérias mais incorpóreas. A mudança está a efectuar-se, é relativamente recente. A forma de avaliar o desenvolvimento não é através das infra-estruturas que o município tem mas na forma como os cidadãos sentem a qualidade de vida. 

Solidariedade - O que se verifica frequentemente é um investimento material e um esquecimento na formação de recursos humanos...
Fernando Ruas
- A Economia Social tem sido um refúgio de combate ao desemprego. Eu não faço ideia quantos milhares de pessoas é que trabalham nessa área... Devem ser uns milhares largos. Chega a ser a actividade mais importante em muitas freguesias, o centro nevrálgico.
Olhe, na minha aldeia a associação é de longe o maior empregador. Tem que se adaptar a formação dos cidadãos a essas necessidades. As escolas profissionais, os institutos têm que formar pessoas para dar respostas na área do social. 

Solidariedade - Que tipo de relacionamento institucional existe entre a ANMP e a CNIS?
Fernando Ruas
- As relações que temos com as diversas associações são sempre abertas, de acordo com solicitações que nos vão fazendo. Eu tenho fomentado algum relacionamento institucional.
Não há um carácter regular mas estamos sempre disponíveis para o que for preciso. Já tivemos algumas reuniões e teremos sempre que for necessário.

 

Data de introdução: 2004-10-21



















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