1 - Fui roubar a Mário Cláudio um título que aproximasse desde o início esta crónica – desde o seu próprio título – da perplexidade que assume cada gesto, cada rotina, cada coisa que sempre tínhamos tido como certa e previsível, nestes tempos de incerteza, de insegurança, de imprevisão …
Um Verão assim … Uma coisa assim …!
A começar pelas férias: por esse tempo de fractura que nos habituáramos a intercalar num ano intenso de trabalho e de canseiras, numa espécie de retorno primacial aos tempos da infância: sem compromissos, sem horários, sem deveres …; por essa ruptura mansa com as rotinas, com o bulício, com o stress, com o tédio, que marcam o decorrer sempre igual dos dias vulgares …
Este ano não é assim …
Se pudéssemos descrever as notas principais dos últimos 5 meses, certamente que uma dessas notas seria a da permanente desconfiança nos outros.
Em relação a cada um dos outros, a começar pelos que nos são mais próximos, temo-nos habituado a prever uma injustificada ameaça, a evitar um gesto de proximidade, a deixar os afectos sem os gestos rituais que os exteriorizam: um beijo, um abraço…
Esta desconfiança, este andar sempre a olhar suspeitosamente para o lado, esta angústia que tem sido a marca diária destes 5 meses, acabou por se constituir como uma nova rotina, como um novo hábito, ocupando de forma absoluta a nossa relação com o mundo exterior.
Tão absoluta que não permite distracções nem intervalos: este ano, as férias de Verão são, salvo algumas diferenças de pormenor, marcadas pelo mesmo clima interior que nos ensombra a alma.
Este ano, o Verão, as férias, não são uma ruptura, não marcam uma diferença, não traduzem um outro ânimo.
2 – Desde há mais de 20 anos, habituei-me a buscar na vizinha Galiza, nas Rias Baixas, o poiso certo que combina o sol e o mar com a proximidade benévola do meu Porto, à distância de duas horas de automóvel.
Tenho-o escrito já muitas vezes nestas crónicas: poucas experiências de um sereno epicurismo se equiparam a estar sentado numa esplanada, a beber um copo de albariño acompanhado de umas fatias de presunto ibérico embrulhado num pedaço de pão galego, em frente do mar imenso e tranquilo que é o Atlântico a penetrar por essas rias que conservam as marcas dos dedos de Deus, quando, ao criar o mundo, pousou uma mão no Noroeste Peninsular, a contemplar a obra.
No Verão, essas paragens eram também o ponto de encontro da família, quer próxima, quer alargada.
Todos os anos, mais de trinta membros da tribo familiar demandavam essas terras tão próximas da nossa: na língua, nos costumes, na gastronomia, na História, na geografia, na herança céltica e na pertença atlântica.
Este ano, tudo mudou; nem creio que houvesse praia onde coubesse tanta família junta, desde que mantendo o distanciamento social, que a pandemia aconselha, mesmo nas praias e nos banhos de mar.
É que esta dúvida em relação aos outros, este permanente olhar de lado, este porfiar em deixar uma distância prudente com quem se cruza connosco, não se limita a inquinar, a deprimir, as relações entre as pessoas; estende-se aos países e às regiões.
Percebe-se; mas não foi sem mágoa que se ouviu desejar que os emigrantes, que todos os anos acorrem em peregrinação sentimental às suas terras de origem, este ano ficassem lá pelos lugares de exílio; ou que as gentes dos meios urbanos, mais afectados pela pandemia, não fossem de férias para o interior de Portugal, supostamente mais poupado pelo vírus.
Também as autoridades galegas, na senda de muitos outros países, resolveram dar um sinal de preferência pela ausência de portugueses nessa região autónoma, introduzindo mecanismos de controlo administrativo a quem, indo deste lado da fronteira, a cruzasse em demanda de tempo de lazer em Terras Gauda.
Houve depois um recuo; mas o sinal de desconfiança estava dado.
3 – Não foi por isso que quebrei o hábito de mais de 20 anos.
Nem foi por o Governo recomendar aos portugueses que fizessem férias cá dentro.
(A este propósito, não se pode deixar sem um comentário de perplexidade o facto de o nosso Governo recomendar aos portugueses, por motivos da sua própria saúde, que não procurassem o estrangeiro para férias, pelos riscos que correriam nos demais países; e manifestar o desejo de que Portugal fosse, como de costume, invadido por hordas de turistas, oriundos de países mais inseguros – segundo a própria avaliação das nossas autoridades -, sem cuidar dos riscos simétricos daí decorrentes:
Não, não foi o Governo da Região Autónoma da Galiza que me demoveu…
É que me habituei, nestes meses, à “nova normalidade” que nos auguram que vai ser o tempo futuro.
Na verdade, nestes tempos sombrios, todos construímos a nossa blindagem, a nossa couraça, a nosso nosso sistema de protecção individual.
O tempo de confinamento habituou-nos a diminuir a nossa liberdade de movimentos, a limitar o nosso raio de actividade, a constranger-nos em redutos e espaços menores.
Por outro lado, a verdadeira sobrecarga de informação que nos vem submergindo com notícias diárias sobre a evolução da pandemia, sobre o número de infectados, de mortos, de internados em hospitais, e sobre o tempo, o modo e os lugares onde vão aparecendo mais casos e mais surtos, dá-nos a possibilidade de construir uma espécie de radiografia do país perante a infecção, conferindo-nos um conforto triste na construção mental de uma geografia dos lugares mais seguros – e escolher para férias esses lugares, como uma continuidade com os dias comuns.
Não tenho essa informação diária e excessiva sobre a forma como as coisas têm evoluído na Galiza.
É que não basta uma ou outra notícia avulsa sobre essa evolução.
A construção mental dos lugares seguros é uma lenta consolidação dessa informação diária ao longo de um igualmente longo período: é uma formação por camadas; não é um flash.
Não pude construir esse “bunker” mental das Rias Baixas.
Fico por cá, portanto.
E de cá mando a crónica, timbrada pelo tom destes tempos de intervalo.
Esperando que seja, na verdade, de mero e breve intervalo.
Até para o ano!
Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)
Não há inqueritos válidos.