HENRIQUE RODRIGUES

FRATELLI TUTTI – A Solidariedade

1 - Por estes dias, o Papa Francisco publicou uma Carta Encíclica, assinada em Assis, sobre o túmulo de S, Francisco, a que chamou, em homenagem a Il Poverello de Assisi, “Fratelli Tutti” – Todos  Irmãos –, replicando a fórmula por que o Santo se dirigia aos seus contemporâneos, nas suas “Admoestações”.

“Fratelli Tutti” - Todos Irmãos; assim mesmo, na língua do Santo, em italiano, afastando-se do cânone da língua latina que costuma designar os documentos pontifícios desta natureza.

O título é mais extenso, todavia: CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO
SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL – e pretende remeter para aquele elemento da tríade “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” que tem andado mais esquecido na prática social e política – a Fraternidade.

(Lembram-se do “Dia de Natal”, do António Gedeão: “Comove tanta fraternidade universal./ É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,/ como se de anjos fosse,/numa toada doce,/ de violas e banjos,/ entoa gravemente um hino ao Criador./ E, mal se extinguem os clamores plangentes,/ a voz do locutor/ anuncia o melhor dos detergentes.”)

Trata-se de uma reflexão do Papa, também provocada pela pandemia que tem assolado o mundo nos últimos meses e que, como sempre acontece, acaba por penalizar mais intensamente os mais pobres e os mais desprotegidos.

Como escreve o Papa Francisco; “Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de ventiladores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver”.

E, noutro passo, com uma actualidade que, no nosso Sector Solidário, temos porventura mais proximidade para reconhecer: "Médicos, enfermeiros e enfermeiras, farmacêuticos, empregados dos supermercados, pessoal de limpeza, cuidadores, transportadores, homens e mulheres que trabalham para fornecer serviços essenciais e de segurança, voluntários, sacerdotes, religiosas... compreenderam que ninguém se salva sozinho”.

São palavras do Papa: “… aquela solidariedade tão especial que existe entre quantos sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido, ou pelo menos tem grande vontade de esquecer. Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada; diria que algumas vezes a transformamos num palavrão, que não se pode dizer; mas é uma palavra que expressa muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destrutivos do império do dinheiro.”

 

2 – Ao lermos as palavras do Papa, não podemos deixar de pensar, como portugueses, nas instituições que nasceram, cresceram e se desenvolveram no nosso seio, “com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de justiça e de solidariedade, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais dos cidadãos”, como refere o artº 1º do Estatuto das IPSS – fundando-se nesse valor da solidariedade entre todos (fratelli tutti), que ilumina o discurso da Encíclica e que se pode resumir na fórmula feliz: “todo o homem é meu irmão” – perdoe-se a unidade de género gramatical-

Nem podemos esquecer os cuidadores – trabalhadores, mas também dirigentes – que têm estado na linha da frente do combate à pandemia, evitando que os seus efeitos sejam tão devastadores como seriam sem a sua dedicação, esforço e competência.

Fundamentalmente, no que respeita à protecção dos mais vulneráveis relativamente aos efeitos letais da pandemia, como os mais velhos, as pessoas com deficiência e os doentes, desmistificando um discurso que se vai deixando alastrar de forma insidiosa sobre o “fardo” económico e social que tais segmentos da população representam.

Como referem as Recomendações do Estudo publicado há dias pela APAV, Relatório "Portugal mais velho/ Por uma sociedade onde os direitos não têm idade": Apesar de vivermos numa sociedade cada vez mais envelhecida, continua a predominar entre nós uma visão negativa do envelhecimento – populacional e do indivíduo. Tal visão comporta estereótipos quanto às pessoas idosas, que são frequentemente vistas pela sociedade como pessoas frágeis, doentes e dependentes. Por sua vez, todo o grupo populacional a que pertencem estas pessoas é encarado pelas camadas mais jovens da população – a população activa – como um encargo económico e social que pesa nos bolsos do Estado e que lhes retira oportunidades de crescimento e prosperidade. No entanto, um dos maiores sinais de prosperidade é, na verdade, o aumento da esperança média de vida, um dos factores que tem vindo a contribuir precisamente para este envelhecimento populacional e que muitos rotulam como um dos maiores problemas da actualidade ou, alguns/mas mais num tom mais positivo, o maior desafio com que se deparam as sociedades ocidentais.”

Ou, no dizer da Encíclica: “A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros. O serviço é, «em grande parte, cuidar da fragilidade. Servir significa cuidar dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo». Nesta tarefa, cada um é capaz «de pôr de lado as suas exigências, expectativas, desejos de omnipotência, à vista concreta dos mais frágeis (…) o serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas.»

Aliás, a Encíclica faz igualmente apelo a outros princípios tradicionais da doutrina social da Igreja, também eles constitutivos do código genético do Sector Solidário: o bem comum, a função social da propriedade, a partilha dos bens e o seu destino universal.

É justo o entusiasmo com que as palavras do Papa foram geralmente acolhidas, nos vários níveis e quadrantes políticos e sociais, cá e no estrangeiro.

Mas esse entusiasmo não pode ser selectivo; esquecendo-o quando tal for útil às querelas ideológicas domésticas. 

 

3 - Por uma singular circunstância, esta Carta Encíclica vê a sua publicação coincidir com a campanha eleitoral para a eleição do Presidente dos Estados Unidos da América, facto político este do maior relevo, não apenas para a política interna norte-americana, mas para o mundo em geral, e para a Europa em particular, tendo em conta o papel dos Estados Unidos no mundo unipolar em que temos vivido nas últimas décadas e o fastio do actual Presidente pelos seus aliados tradicionais europeus.

Tem sido apontado pela generalidade dos observadores internacionais como errático e perigoso o comportamento da Administração Trump na gestão doméstica da infecção por Covid-19, com o Presidente a não reconhecer a natureza letal do vírus e a induzir a população a não adoptar os comportamentos de protecção e prevenção recomendados pela comunidade científica - o que terá tido como efeito o facto de, naquele país, se ter já ultrapassado o número de 200.000 óbitos devidos à pandemia.

(Recorde-se que, ainda há alguns meses, o Presidente aventava que o total dos óbitos, durante todo o curso da pandemia, se situaria entre 100.000 e 200.000 – o máximo previsível. Infelizmente, ainda estamos longe do fim …)

Claro que, no plano humano, queremos que Donald Trump se cure e que vença a doença que o veio atingir durante a passada semana, após o debate com Joe Biden.

Mas, na verdade, nem na doença o personagem perde os traços de arrogância e desprezo pelos interesses diversos do seu, de que é exemplo o facto de, não obstante estar infectado, ter forçado dois seguranças a acompanhá-lo, num carro fechado, expostos à contaminação presidencial, só para Trump poder ir saudar apoiantes que o aguardavam no exterior do Hospital onde estava internado.

O que se espera é que Trump vença a doença; mas seja vencido pelos votos.

Como escreve o Papa, na Encíclica:

“...a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais. “

E, noutro passo: "É possível desejar um planeta que garanta terra, tecto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas.

 

4 – Escrevo este texto no dia 5 de Outubro.

Viva a República!

 

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2020-10-08



















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