1 - “os namorados mortos não sabiam
e não queriam morrer. nunca ninguém
em verdade o quis já, mas acontece
que quase sempre morte e amor se tocam
dos namorados mortos não se diga
que já não têm destino nem são livres
sequer de os esquecermos mesmo quando
se lhes apaga o rosto o sítio o nome
os namorados mortos não são fáceis
tu, por exemplo, evitas enredar-te
com o que sabes deles, mas que sabes
além de alguma história ou da aparência?”
2 – Fui buscar a Vasco Graça Moura, e ao seu livro “O Mês de Dezembro e outros poemas”, estes versos de inverno, para o início desse fio de Ariadne com que se constitui o itinerário de qualquer texto.
Retenho particularmente a parte final do último quarteto, “mas que sabes além de alguma história ou da aparência?”
Na verdade, nada, ou quase nada, sabemos sobre os outros - e, sobre o aspecto que me fez trazer à crónica estes versos, nada mais sei senão o que o que vi numa fotografia no jornal: um casal, de mãos dadas, em duas camas pegadas de hospital, numa despedida, em vésperas de morrerem de Covid, em dias sucessivos.
Já aqui escrevi, há alguns meses, que uma das manifestações mais impiedosas da pandemia é a absoluta solidão em que se morre.
Como tenho lido, muitos doentes ocultam mesmo os sintomas da doença, para poderem morrer em casa, com receio de serem levados para morrer, sozinhos, num hospital.
Também já aqui referi, como muito positivo, o sinal do Primeiro-Ministro, de que percebera a dor das famílias enlutadas, tendo determinado, na regulamentação dos sucessivos estados de calamidade e de emergência, a impossibilidade da proibição da presença dos familiares nos funerais, como acontecia nos primeiros tempos da pandemia.
O decurso do tempo, na verdade, acabou por introduzir algumas notas de bom senso, temperando muitos dos exageros assépticos com que os doentes e seus familiares foram confrontados nesse primeiro período.
O mesmo se passou com as visitas aos utentes dos lares: proscritas na fase inicial da pandemia, de acordo com estritas exigências das autoridades de saúde, em breve se viu como, com imaginação e compaixão, era possível compatibilizar a necessária prevenção da infecção com a atenção individualizada a que cada um tem direito, principalmente quando está doente e em risco.
A lembrança dos serviços do hospital em juntar para a despedida o casal da fotografia vem na linha dessa progressiva tentativa de humanização da prestação de cuidados de saúde neste contexto dificílimo – e constitui um dos raros bálsamos destes tempos de mal viver.
É nesse sentido, de necessidade de adequação ao real, que tem de ser encarada a forma como o Natal, já bem próximo, será passado com os utentes dos lares.
Com a família, sempre que possível – naturalmente!
Com a família de sangue; e com a família da proximidade, com quem convivem diariamente.
Preservando as condições de segurança, como é óbvio; mas sem esquecer que, mais importantes do que as condições de segurança, são as condições de autonomia e de liberdade individual.
Mesmo em tempo de pandemia …
A pandemia não suspende os direitos fundamentais.
3 – Este mês de Dezembro também nos trouxe alguma réstia de esperança, ao prenunciar-se o início, em breve, da vacinação contra a Covid.
Escrevo esta crónica dois dias antes de começar esse processo na Grã-Bretanha; e pensa-se que no nosso País poderá iniciar-se no início de 2021.
Começou mal, com polémica, o processo entre nós.
Já que é a Comissão Europeia que paga as vacinas para os países da União, tendo sido ela quem fez as encomendas aos fabricantes, mais valeria que fosse também a Senhora Ursula von der Leyen, com o pragmatismo alemão, e sem estados de alma, a estabelecer as prioridades da vacinação geral, já que não podem ser todos vacinados na primeira hora e o processo vai demorar vários meses.
Evitava-se a figura que entre nós se fez, resolvendo nomear um grupo de “peritos”, uma task force, para definirem qual deveria ser a ordem de prioridades a aplicar na nossa terra.
Como dizia um antigo professor de Direito, virado para um aluno em exame de doutoramento: “a sua tese tem coisas boas e coisas originais; só que as boas não são originais, e as originais não são boas.”
Os nossos “peritos”, deixados à rédea solta, quiseram ser originais – e não escaparam à ancestral tentação para a asneira.
Na verdade, a primeira é óbvia prioridade é a dos utentes e trabalhadores dos lares e dos profissionais de saúde que lidam directamente com os doentes de Covid, o que constitui critério uniforme em toda a União.
Mas quanto aos velhos, que são o primeiro grupo de risco agravado, a regra europeia é também a da sua vacinação prioritária.
Para todos, naturalmente...
Já a nossa task force encarou uma hipótese certamente original, como a tese do doutorando; mas tão má como a mesma tese: a pretexto de a vacina não estar suficientemente testada na população com mais de 75 anos, os “peritos” que a apresentaram propunham que quem tivesse uma idade superior a essa deveria esperar, para não correr riscos.
E então os residentes nos lares, a grande maioria com mais de 75 anos, poderiam ser vacinados?
Correndo os alegados riscos?
Podemos dizer que foi uma ideia tonta: foi o que lhe chamou o Presidente da República, numa censura que fez a Comissão decidir, em 2 ou 3 dias, aquilo para que lhe fora concedido o prazo de 30 dias.
Igual à Europa toda – sem originalidades ou singularidades.
Não teria sido precisa a task force – bastava copiar.
Ao menos, vejamos se não acontece o que sucedeu com as vacinas da gripe: em que muita população de risco não foi vacinada, por as vacinas terem ido para outros, não tão prioritários.
Nunca se sabe ...
Podíamos ter sido poupados, a propósito de um sinal de esperança, como é o caso, a uma polémica inútil.
4 – Pegando no fio de Ariadne e voltando ao início do labirinto, escapando ao Minotauro: desejo o melhor Natal possível para todos os leitores destas crónicas; e um Novo Ano bem melhor do que o que está para acabar – e este que leve com ele a peçonha!
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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