Devo confessar que tenho um secreto prazer (vagamente perverso) em profanar as vacas sagradas da minha profissão de economista.
E, entre elas, mais que todas, o famoso Produto Interno Bruto, PIB para os amigos.
O PIB reina supremo na economia e na política. Já governos caíram porque o PIB cresceu umas décimas a menos do que o prometido e já oposições perderam eleições porque o famigerado teimou em engordar parecendo, desso modo, abençoar a política do governo incumbente.
Na verdade, atribuímos ao PIB uma realidade quase tangível que ele, de facto, não tem.
Pensamos que o número do PIB é uma métrica precisa como se estivéssemos a medir o peso de um saco de batatas ou o comprimento de uma sala.
E, no entanto, o PIB não passa de uma estimativa, precária, obtida em grande parte por métodos indiciários, sujeita a revisões ao longo do tempo que podem ser de grande amplitude e que, como tal, devíamos sempre abordar “cum grano salis” como diziam os latinos.
Para termos a noção da relatividade do conceito basta olhar para uma série longa do PIB hoje e comparar com os valores que foram sendo divulgados ao longo do tempo. Podemos, no passado, ter feito um par de asneiras por ter dado demasiada importância ao PIB como apresentado no momento.
O PIB sofre de problemas metodológicos e de problemas de medida.
Comecemos pela metodologia.
Sempre me fez confusão que a minha infelicidade pessoal contribuísse para o PIB.
Foi assim com o meu divórcio e a gorda contribuição para o PIB dos chorudos honorários do meu advogado. Ou com a conta da reparação do meu automóvel quando tive um acidente.
Quando me canso a trabalhar na minha modesta exploração agrícola o PIB não bole uma palha, contudo, quando um dia destes me magoei com uma alfaia, a conta do hospital aumentou o PIB.
Muito do mais valioso trabalho da sociedade não conta para o PIB. Por exemplo, o trabalho doméstico, o voluntariado ou os cuidadores informais.
Por outro lado, mesmo o que conta para o PIB, poder ser difícil de medir.
Por exemplo quanto valem os serviços públicos de educação ou de saúde? Na ausência de critério melhor valorizamos esses serviços pelo que custam ao Estado, contudo, esse indicador pode não refletir a produção verdadeira.
O PIB tem um outro problema – não é uma coisa que se possa medir a toda a hora. O melhor que conseguimos atualmente são estimativas trimestrais publicadas mês e meio a dois meses depois do fim do período em análise.
É por tudo isto que muitas instituições públicas e privadas estão a promover modelos de “nowcast”, ou seja, modelos que dão uma estimativa em tempo quase real, no limite, ao dia, da evolução do nível de atividade económica. Esses modelos recorrem a informações que podem ser obtidas a todo o momento, como, por exemplo, imagens de satélite que permitem avaliar o tráfego de mercadorias nas estradas, o número de gruas ativas de construção civil nas cidades ou o movimento de barcos nos portos.
Claro que isto só foi possível com o aparecimento da indústria do “big data”, isto é, empresas que conseguem recolher e tratar quantidades gigantescas de informação em pouco tempo.
Mas se o PIB, mesmo em tempos normais, já tem problemas sérios, em dias de pandemia como os que vamos vivendo, torna-se um instrumento de utilidade duvidosa.
Um primeiro exemplo. Com a pandemia a produção dos restaurantes diminuiu significativamente, contudo, a produção de refeições casa aumentou muito. No entanto, como o trabalho doméstico não conta para o PIB, podemos ficar com uma noção errada e excessiva da queda da produção coletiva.
A educação pública produziu menos, nomeadamente quando as escolas estiveram fechadas. Mas o PIB diz que se produziu o mesmo porque a contribuição para o PIB é o custo de produção, essencialmente salários, e esses continuaram a ser pagos.
Na saúde deve ter acontecido o contrário. Talvez nunca se tenha produzido tanto no serviço nacional de saúde, no entanto, como o custo total apenas terá aumentado marginalmente, o PIB diz-nos que se produziu quase o mesmo de antes da pandemia.
Nestes tempos extraordinários também as comparações internacionais ficam prejudicadas. A resposta à crise pandémica, em termos da dimensão da intervenção do estado é muito díspar de país para país. Países que despejaram mais dinheiro em cima da economia podem verificar um recuo do PIB mais pequeno que outros países que foram mais frugais na resposta financeira pública. Contudo, o facto de o PIB eventualmente ter caído um pouco menos aqui ou ali não quer dizer, necessariamente, melhor performance económica. Longe disso!
Mas se não é o PIB que nos guia, para onde devemos olhar? Se não é com o PIB, como medir a eficácia das políticas económicas?
Como, nestes tempos excecionais, os agregados das contas nacionais podem significar relativamente pouco, devemos dar mais atenção a métricas objetivas, que podemos medir na hora e que nos vão trazendo notícias sobre como anda a temperatura da economia.
Por exemplo, pode ser de reduzido interesse saber como evolui o agregado do rendimento disponível das famílias, mas é da maior importância saber quantas famílias estão por baixo de um mínimo de segurança alimentar.
Também pode não dizer grande coisa o balanço agregado das famílias. Talvez tenha melhorado porque, sobretudo alguma classe média, haverá de estar a poupar mais com as lojas e restaurantes fechados e com a impossibilidade de viajar para férias. Mas quantas famílias aumentaram o risco de insolvência, sobretudo quando se esgotar o efeito das moratórias?
Recomendaria que se desse a maior importância aos indicadores de saúde mental. Temo que esta crise deixe marcas mentais profundas em muitas pessoas, com consequências graves futuras na força de trabalho nacional.
Estaria menos preocupado com a taxa de desemprego como medida pelas estatísticas públicas e mais atento aos indicadores que nos podem ir adiantando quantos postos de trabalhos se estão a perder, porventura, definitivamente.
Em suma, a informação agregada das contas nacionais a que estamos habituados não é de grande préstimo nestes tempos excecionais para uma correta definição ou avaliação da eficácia das políticas públicas.
Informação granular, o mais objetiva possível, idealmente obtida na hora, e mais foco no suporte aos mais frágeis são seguramente mais importantes que umas décimas a mais ou a menos no bendito do PIB.
Não estou aqui a anunciar a morte do PIB. Vamos lidar com ele por muitos anos e bons. O PIB, como o conhecemos hoje, é um conceito cuja medida sistemática tem algumas décadas de vida nas economias de capitalismo avançado. Melhorou muito ao longo do tempo e continua a ser uma métrica indispensável apesar dos seus enormes problemas. O que dizemos é que, na situação invulgar que estamos a viver, mau seria que o PIB fosse a métrica pela qual elaboramos e avaliamos as políticas públicas.
Não há inqueritos válidos.