“A educação pré-escolar promove o desenvolvimento global da criança, nomeadamente o domínio social e interpessoal, as competências comunicacionais e fomenta a sua interação em grupo, entre outras áreas. Com esta nova suspensão temo que o desenvolvimento da criança possa ser comprometido e, consequentemente, os efeitos psicológicos verificados na sequência do primeiro fecho do pré-escolar se intensifiquem”. As palavras da psicóloga Sandy Costa retratam e resumem bem a realidade que as crianças que frequentam o Pré-escolar enfrentam, quando a atividade presencial está suspensa novamente, desde o passado dia 22 de janeiro, tendo entrado em «modo à distância» desde o dia 8 de fevereiro.
Ainda sem data para retomar as atividades presenciais, os técnicos das instituições temem a recidiva de alguns dos efeitos detetados nas crianças após o primeiro confinamento, que durou dois meses e meio, no final do primeiro semestre de 2020.
“Notámos que houve falta de socialização com outras crianças e consequentemente uma linguagem mais carente do imaginário e da fantasia e com mais ‘expressões de adultos’ e ainda uma ansiedade por parte da maioria das crianças em brincar juntas”, começa por sublinhar Marta Oliveira, coordenadora pedagógica na Casa do Povo de S. Bartolomeu de Messines, acrescentando: “Notámos ainda uma menor autonomia nas rotinas diárias, como ir à casa de banho, calçar sozinho e comer sozinho”.
Mais a norte, os problemas são idênticos. Como relata Diana Cancela, coordenadora pedagógica no Centro Social da Fonte da Moura, no Porto, “uma grande parte das crianças regrediu nas suas aprendizagens cognitivas, com um impacto acrescido na faixa dos cinco anos que, em setembro de 2020, ingressaram no ensino básico com menos competências cognitivas e comportamentais essenciais para a transição para o contexto escolar”.
E se as aquisições de autonomia já aprendidas também houve regressão, na instituição que integra a Obra Diocesana de Promoção Social (ODPS), “comportamentalmente, os efeitos foram ainda mais claros e percetíveis: uma grave ausência de regras e rotinas, maior irritabilidade que conduz a birras e comportamentos de desafio para com o adulto, distrações e nos mais novos voltámos a ter a ansiedade de separação em relação ao adulto e a recusa em ficar na escolinha de manhã, com períodos longos de choro”.
No seu trabalho com os mais novos, Sandy Costa identificou, de um modo geral, “efeitos na estabilidade emocional e comportamental das crianças, que se traduziram-se essencialmente em regressões, nomeadamente maior dependência das figuras de vinculação e na autonomia das tarefas diárias com aumento da necessidade de monitorização”.
A psicóloga observa ainda “a falta de rotina que muito está presente na educação pré-escolar, bem como a necessidade do relacionamento interpessoal através do brincar e a interação social espoletou o aumento da sintomatologia ansiosa na maioria das crianças”, para além de “uma maior agitação psicomotora e diminuição do tempo de atenção/concentração durante a execução das tarefas”.
No entanto, devido à sua grande plasticidade, as crianças rapidamente se adaptam e no regresso à normalidade depressa “retomaram as suas relações e brincadeiras com os colegas”.
Disso dá conta Maria José Coelho, coordenador pedagógica da Associação Popular de Apoio à Criança (APAC), na Póvoa de Santa Íria: “A ausência originou algumas regressões, no comportamento, na autonomia, na socialização e na aprendizagem nas crianças, principalmente nas mais pequenas. No entanto, sentimos que as crianças ficaram muito felizes em voltar à escola, vinham ansiosas para brincar, interessadas em aprender e participar nas atividades propostas e, sobretudo, com muita vontade de rever e estar com os amiguinhos e as equipas”.
A responsável da APAC lembra que, “após o primeiro confinamento, as crianças regressaram e encontraram uma escola diferente” e apesar disso tudo, “houve de um modo geral uma boa adaptação das crianças à nova realidade escolar, até mesmo no cumprimento das novas regras de higiene”.
Contudo, com nova ordem de marcha para casa, a opinião geral é que os problemas observados após o primeiro confinamento ameaçam voltar. E se em 2020 tudo foi novo e inesperado, agora já há essa experiência… para o bem e para o mal!
“Um dos principais problemas deste novo confinamento é que as pessoas ‘já sabem ao que vão’, incluindo as crianças. Já passámos por isto antes, e apesar de em março de 2020 tudo ter sido novidade e existir o medo do desconhecido – ‘o que é isto e o que vai ser’ –, o que acabava por servir como justificação mental para a necessidade de nos isolarmos e acreditarmos que ‘vai ficar tudo bem’, mas desta vez confinamos com quase um ano de pandemia e com toda a saturação e desgaste mental que ela nos tem provocado”, defende Diana Cancela, da ODPS, sublinhando que “as crianças, por mais pequenas que sejam, também sentem isto, quer diretamente, quer por osmose da ansiedade e medo dos pais”.
Também Maria José Coelho, da APAC, considera que, “desta vez, as expetativas são diferentes” e, citando a psicóloga da instituição, acrescenta: “Parece-me que as crianças também foram ficando mais resilientes e mais adaptadas às situações novas. As crianças têm grande capacidade de adaptação e vão ficando mais preparadas para enfrentar obstáculos e novos desafios”.
Já para Marta Oliveira, da Casa do Povo de Messines, os receios são notórios: “Os efeitos da pouca socialização e fraca estimulação em idades tão importantes como o pré-escolar irão notar-se com toda a certeza, ao nível do desenvolvimento da linguagem, da interação social, do sentido crítico e da autonomia da criança. E os efeitos serão ainda mais notórios nas crianças que iniciaram terapias de apoio há pouco tempo e que se privaram do convívio com os outros de modo a trabalharmos a sua ‘inclusão’”.
E porque os efeitos podem ser bastante gravosos, Diana Cancela sublinha que o regresso à escola deve ser o mais rápido possível.
“Não sabemos quanto tempo vai durar este novo confinamento e esperamos que os especialistas e governantes, com o conhecimento que hoje têm dos efeitos do primeiro confinamento, percebam que os mais pequenos têm de regressar o mais rapidamente possível às suas escolas, assim que a situação sanitária o permita. Caso contrário, estamos a correr o sério risco de comprometer toda uma geração”, assevera a técnica da ODPS que nos seus 12 centros sociais, em outros tantos bairros problemáticos da cidade do Porto, tem nove respostas de Pré-escolar.
O que se espera quando este novo confinamento terminar é que o regresso à esperada normalidade decorra, pelo menos, como em 2020, pois não só as crianças rapidamente se adaptaram às novas exigências e regras, como restabeleceram facilmente todos aqueles elos que criaram e desenvolveram no Pré-escolar, não só com os seus pares, mas com todos aqueles que constroem o seu dia-a-dia em grupo nas instituições.
Na APAC, na retoma das atividades presenciais em junho de 2020, atenuaram-se os efeitos negativos do confinamento “com muito afeto e dedicação das equipas, que tiveram a missão de assegurar o cumprimento das normas de segurança e higiene implementadas na promoção da saúde das crianças e, ao mesmo tempo, manter a normalidade possível, no cumprimento das rotinas diárias, assim como nas práticas e ações pedagógicas a desenvolver”, testemunha Maria José Coelho.
Quando o Pré-escolar reabriu no dia 1 de junho de 2020, também em Messines, “as crianças rapidamente voltaram a construir as suas rotinas e a socializar”, refere Marta Oliveira, que também nessa altura “alguns pais conseguiram voltar a trabalhar, o que psicologicamente foi positivo para a família como um todo, pois ‘famílias felizes tem filhos felizes’”.
A reabertura do Pré-escolar foi fundamental para atenuar e recuperar os efeitos perniciosos do confinamento, tal como refere a psicóloga Sandy Costa: “Com a reabertura das atividades letivas da educação pré-escolar verifiquei que os efeitos provocados pelo confinamento, anteriormente mencionados, foram atenuados e gradualmente recuperados na generalidade das crianças”.
Esta é também a opinião de Diana Cancela, da ODPS, pois foi assim que se conseguiu “um retomar gradual da normalidade na vida das crianças”, mas, “principalmente, o regresso à instituição permitiu o retomar do contacto com os pares, o que é fundamental para o bem-estar das crianças, pois a pandemia privou-as de uma das principais e mais importantes ferramentas para o seu desenvolvimento: as relações sociais, o toque, a partilha”.
E este, tal como os demais efeitos identificados pelos técnicos nas crianças, não são exclusivos das crianças oriundas de famílias de estatuto socioeconómico mais baixo. Todas as nossas interlocutoras consideram que os efeitos são transversais às famílias.
E aqui, Diana Cancela, também ela psicóloga de formação, destaca a capacidade e competência dos pais para, em pandemia ou não, ser, de facto, o suporte da criança.
“Durante o período de confinamento as famílias foram obrigadas a partilhar de forma exaustiva o mesmo espaço, tendo de aprender a gerir da forma adequada tarefas domésticas, profissionais e de apoio aos filhos. Nem todas as famílias/pessoas são capazes de o fazer da forma mais salutar necessária, quer por fragilidades emocionais (que a pandemia veio agravar ainda mais!), quer por escassez de recursos cognitivos, quer pelas dificuldades económicas que se agravaram ainda mais”, argumenta a técnica do Centro Social da Fonte da Moura, acrescentando: “A nossa população é maioritariamente pertencente a um estrato socioeconómico baixo, mas esta pandemia veio confirmar que não é esse o fator mais importante na boa retaguarda uma criança. Famílias que sempre se preocuparam em estimular os seus filhos, em dar continuidade em casa ao trabalho que é feito na instituição, em trabalhar regras e comportamentos, ou em perceber o que devem fazer para contribuírem para o melhor desenvolvimento dos seus filhos, continuaram a fazê-lo durante o primeiro confinamento. Assim como as famílias ditas ‘problemáticas’, mais desligadas e desinteressadas de tudo e de todos, continuaram a sê-lo. E é principalmente isto que marca as diferenças entre as crianças, em pandemia ou num ‘mundo normal’”.
Apesar de no momento da nova suspensão das atividades presenciais do Pré-escolar ainda não se ter ideia de quando e como as atividades seriam retomadas, todas as instituições se prepararam para acompanhar não só as crianças à distância, como apoiar os pais e famílias em mais este período em que as crianças estão em casa. Um trabalho essencial, até porque desde o dia 8 de fevereiro as atividades foram retomadas de forma não presencial, ou seja, à distância.
Neste particular, Diana Cancela ressalva que, “independentemente de todos os esforços que se fizeram para manter contacto regular com as crianças ou o ensino à distância, nas faixas etárias mais jovens nada substitui o contacto presencial, pois as crianças mais pequenas precisam de experiências mais concretas e interativas para consolidar conhecimentos”.
Ainda assim, e perante a determinação da atividade não presencial também para o Pré-escolar, segundo Sandy Costa, as instituições devem, em primeiro lugar, “identificar as necessidades da criança e respetiva família” e, então, “posteriormente, atendendo às suas particularidades devem ser desenvolvidas estratégias pedagógicas e novas formas de comunicação”.
Sandy Costa lembra ainda a importância dos técnicos especializados com o papel de prevenção e intervenção nas problemáticas emergentes de que tanto carecem as instituições, salientando que “a Ordem dos Psicólogos Portugueses disponibiliza via online documentos de apoio para auxiliar pais/educadores”.
Para melhor poder acompanhar aas «suas» crianças agora em casa, a Casa do Povo de Messines garantiu, logo antes da suspensão das atividades, que conseguia manter o contacto com todas as crianças, “quer através da sua adesão ao grupo online da sala, quer através do telefone”, explica Marta Oliveira, revelando que a instituição “mantém a funcionar uma linha de apoio psicológico para pais”.
Na Póvoa de Santa Íria, a APAC continua, “da mesma forma, a manter a proximidade habitual com as crianças e suas famílias”, mas Maria José Coelho ressalva que “consoante a evolução da situação, poderá surgir a necessidade de implementar novas práticas educativas”.
O mesmo se passa na Fonte da Moura, no Porto, pois “a forma de atuar com cada criança durante este confinamento será semelhante ao anterior, tentando manter-se um contacto, mais ou menos, regular com as famílias, conforme a recetividade destas, não só para sugerir atividades que poderão fazer, mas também para sabermos do estado de cada uma”.
Pedro Vasco Oliveira
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