Os idosos que vivem em lares ou frequentam os centros de dia têm múltiplas doenças e dependência e as instituições têm de adaptar a prestação de cuidados destas pessoas, revelam os resultados preliminares de um estudo nacional.
Os primeiros resultados do estudo "As respostas sociais no percurso de cuidados à pessoa com dependência", da autoria da Universidade de Évora, encomendado pela Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade (CNIS), dá conta de que a multimorbilidade e a dependência são as duas características mais marcantes na saúde dos idosos portugueses.
O estudo, que ainda decorre, procurou analisar duas das três respostas sociais previstas atualmente, no caso as Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI) e os Centros de Dia, com o objetivo de compreender e caracterizar a dependência das pessoas cuidadas e desenvolver modelos de cuidados com base nas características encontradas.
Tal como explicou o coordenador da investigação, foram realizados três estudos, um para avaliar o perfil funcional e cognitivo das pessoas idosas que frequentam estas estruturas, outro para conhecer as condições estruturais do contexto onde os cuidados são prestados e um terceiro para avaliar o enquadramento legislativo e regulamentar de funcionamento das ERPI e dos Centros de Dia, para depois ser possível propor um modelo de intervenção.
De acordo com o Professor Manuel Lopes, os resultados preliminares mostram que é necessário repensar o modelo de cuidados prestados aos idosos que vivem numa ERPI ou frequentam os Centros de Dia, apontando que não há um critério sobre quem pode fazer o diagnóstico das necessidades de cada utente, já que em algumas instituições é um enfermeiro, noutras o assistente social ou às vezes outro profissional de saúde, independentemente de ter ou não formação para isso.
Nesse sentido, defende que o modelo de cuidados precisa reconsiderar o enquadramento legislativo, o enquadramento organizacional, as necessidades das pessoas e os resultados que procura atingir.
O estudo, que foi apresentado no âmbito das comemorações dos 40 anos da CNIS, foi feito com base na avaliação de 645 pessoas, 537 das quais a viver em ERPI, onde, aliás, a média de idades é mais alta (86,3 anos) do que nos Centros de Dia (83,2 anos).
A multimorbilidade, ou seja, ter duas ou mais doenças, é uma realidade, se bem que mais acentuada entre os idosos das ERPI, onde quase 70% dos idosos padece dessa condição, entre 69,4% dos homens e 70,4% das mulheres, contrariamente ao que se passa nos Centros de Dia, onde apenas 36,4% dos homens apresenta multimorbilidade, apesar de 66% das mulheres também ter.
As doenças mais prevalentes são as do aparelho circulatório (58,3%%), sistema nervoso (37,3%) e doenças do sistema musculoesquelético (30,5%), tendo sido também analisados indicadores de deterioração cognitiva, um dos primeiros sinais de doenças como a demência.
A análise revelou que nos Centros de Dia 43,3% das mulheres e 35,3% dos homens tem sinais de deterioração cognitiva, enquanto nas ERPI esses valores aumentam para 59,6% de mulheres e 50% de homens.
"Ou seja, metade ou mais das pessoas que estão em ERPI tem sinais de deterioração cognitiva", sublinhou Manuel Lopes, acrescentando que "deve merecer maior atenção" o facto de tanto numa resposta como noutra haver uma prevalência tão elevada de idosos com sinais de deterioração cognitiva.
Depois da constatação, a equipa de investigadores escalonou o grau de degradação cognitiva e constatou que quase metade dos idosos que residem numa ERPI (40%) têm uma deterioração moderada ou grave, sendo que 22% tem de forma grave, "uma dimensão extremamente importante e que condiciona os cuidados prestados a estas pessoas", referiu Manuel Lopes.
Constataram também que as pessoas que residem em ERPI são muito mais dependentes do que as que frequentam os Centros de Dia, sendo que quase 60% delas tem níveis de dependência acentuados, entre 29% com problemas moderados, 20% com problemas graves e 7,5% com problemas complexos e a precisarem de ajuda para tudo.
Já nos Centros de Dia, 66% das pessoas tem problemas ligeiros e 14,2% não tem qualquer dependência, contra 7,3% nas ERPI.
O estudo refere também que há uma diferença de género e que as mulheres apresentam pior perfil funcional e mais degradação cognitiva do que os homens, além de ter notado uma maior degradação cognitiva entre os idosos solteiros, viúvos ou divorciados, entre as pessoas que nunca frequentaram a escola, e entre os que estão institucionalizados em ERPI.
PROFESSOR MANUEL LOPES, UNIVERSIDADE DE ÉVORA
Resumo dos Resultados do Estudo de Intervenção Complexa Sobre as Respostas Sociais no Percurso de Cuidados à Pessoa com Dependência
O Estudo foi desenvolvido a pedido da CNIS, por uma equipa de investigadores da Universidade de Évora, coordenada por Manuel Lopes. Os objetivos gerais inicialmente definidos foram compreender e caracterizar a dependência das pessoas cuidadas nestas respostas sociais e desenvolver um modelo de cuidados adequado a esta nova realidade.
Todavia, interessa esclarecer um pouco melhor as motivações deste estudo. Assim, é por todos conhecido o processo de transição demográfica e epidemiológica que Portugal tem sofrido, principalmente nos últimos 40 anos. Deste processo salientamos alguns dos aspetos que consideramos mais importantes:
Foi neste contexto e com estas motivações que desenvolvemos este estudo. Também convictos que o problema é complexo e que não podemos olhar simplesmente para uma única dimensão do mesmo. Assim, desenvolvemos 3 estudos:
Por último, com base nos estudos desenvolvemos o que designamos como Modelagem da intervenção. Ou seja, desenvolvemos um modelo de cuidados que apresentamos sumariamente.
Principais resultados
A amostra global foi constituída por 645 pessoas idosas, com uma média de idades de 85,86 anos. A mais nova tinha 65 anos e a mais idosa 101 anos. Em ERPI a média de idades foi de 86,39 anos, com o mesmo intervalo de idades e em Centro de Dia foi ligeiramente inferior, sendo de 83,22 anos e o intervalo de idades entre os 65 e os 96 anos. De referir ainda que a maioria das pessoas desta amostra são do sexo feminino, sendo tal maioria mais expressiva nas ERPI do que nos CD. Daí podermos falar numa feminização do envelhecimento. Por outro lado, a maioria das pessoas idosas desta amostra são viúvas, solteiras ou divorciadas, sendo, também neste caso, mais evidente nas ERPI que nos CD. Por último, cerca de um terço não sabem ler nem escrever e cerca de 60% frequentaram a escola, mas não o ensino superior.
Relativamente ao perfil funcional do total de participantes verificámos que apenas 8,5% não necessita de qualquer tipo de apoio nas atividades de vida diária e que cerca de metade (50,7%) precisa de ajuda diária nos cuidados; cerca de ¼ (24,1%) têm níveis elevados de dependência que requerem cuidados diários de elevada frequência (problema grave) ou de substituição total (problema completo). Considerando os dois contextos (ERPI e CD) percebemos que:
Ainda relativamente ao perfil funcional destacar que as áreas de maior carência de cuidados são o autocuidado (atividades como comer e beber, tomar banho, entre outros cuidados pessoais), a aprendizagem e funções mentais (como a memória, a consciência, e orientação), a comunicação (capacidade para comunicar) e as relações com familiares e amigos. Se escalonarmos os itens específicos nos quais uma percentagem expressiva de pessoas precisa de ajuda, o ranking dos primeiros 4 fica assim ordenado:
Em relação à multimorbilidade, mais de dois terços da amostra apresentam duas ou mais áreas de diagnóstico identificadas, sendo que destes, 70,1% pertencem ao grupo de ERPI e 55,8% ao grupo de CD. As doenças do aparelho circulatório representam a área de diagnóstico mais prevalente (58,3% total amostra; 60,4% ERPI e 47,4% CD) seguida das doenças do sistema nervoso (37,3% total amostra; 40,65% ERPI e 20% CD) e das doenças do sistema musculoesquelético (30,5% total amostra; 29,7% ERPI e 34,7% CD).
Da avaliação cognitiva (avaliada através do Mini Mental State Examination) constatamos que a maior parte das pessoas da amostra apresenta deterioração cognitiva (53,7%). A deterioração cognitiva é maior nas ERPI (56,6%) do que nos CD (39,8%). A avaliação cognitiva feita com outra escala (Blessed Dementia Scale) confirma a anterior. Assim, contata-se que 67,5% das pessoas apresentam algum grau de deterioração. Mas, mais relevante é o facto de 34,7% da amostra apresentar deterioração moderada ou grave. Apenas 32,5% não apresenta nenhum tipo de deterioração. A deterioração cognitiva atinge particularmente as dimensões “vida quotidiana” e “mudança de hábitos”. Também atinge mais as mulheres que os homens e é muito mais acentuada nas ERPI que nos CD.
Da análise da relação entre variáveis realçamos ainda os seguintes dados:
Os participantes casados apresentaram melhores níveis cognitivos do que os não casados. Tal está de acordo com o encontrado noutros estudos e significa que as relações familiares e sociais são de extrema importância para um envelhecimento bem sucedido.
As mulheres apresentaram pior perfil funcional e cognitivo do que os homens, o que indica maior dependência funcional e maior probabilidade de demência. Também neste caso, estes resultados estão de acordo com outros estudos. Provavelmente tal resulta da conjugação de uma diversidade de fatores que carecem de mais estudos.
Os participantes que não frequentaram a escola apresentaram pior perfil funcional e mais degradação cognitiva do que aqueles que a frequentaram. É sabido que a estimulação cognitiva ao longo da vida é um elemento protetor de grande importância. Para além disso, o ter frequentado a escola pode ter permitido às pessoas acesso a melhores condições de vida e consequentemente a uma vida mais saudável.
Os participantes que frequentam os CD e residem nos seus domicílios apresentaram melhor perfil funcional e cognitivo do que os que se encontram a residir em ERPI. Estes resultados não nos permitem afirmar se tal facto é causa ou consequência. Ou seja, são institucionalizados devido à deterioração ou esta acelera-se devido à institucionalização?
Os participantes com multimorbilidade apresentaram pior perfil funcional do que os que têm uma ou menos doenças. Esta relação também está bem documentada, ou seja, existe uma clara associação entre a multimorbilidade e a dependência, sendo esta, frequentemente, resultado da primeira. Isto significa que a situação de dependência tem em cada pessoa particularidades associadas às suas doenças e por isso requer cuidados específicos.
Dos resultados relativos às características estruturais (condições físicas, humanas e organizacionais) e processuais (atividades realizadas no cuidados aos idosos) das ERPI destacamos apenas alguns breves aspetos:
Face ao exposto propomos um modelo de cuidados que aqui apenas é enunciado. Esse modelo assenta em quatro princípios fundamentais:
Sendo centrado na pessoa e tendo em consideração os dados atrás apresentados, terá particular atenção à dependência funcional, nomeadamente ao nível do autocuidado; à deterioração cognitiva e à quebra de laços relacionais.
O modelo de cuidados organizar-se-á de acordo com os passos sequenciais do processo de cuidados:
Conclusão
Indubitavelmente as pessoas que neste momento são utentes das ERPI e CD têm, maioritariamente um conjunto de características que, estando associadas à multimorbilidade e à dependência, expõem necessidades de cuidados complexos que carecem de uma frequência e diferenciação consideráveis. Tal obriga-nos a repensar as estruturas e os modelos organizacionais, pensando-os numa lógica de integração e continuidade, e sempre numa perspetiva de promoção do bem-estar e da qualidade de vida.
Os nossos idosos, ou seja, os nossos pais e os nossos avós merecem isso!
Se não o fizermos por eles, façamo-lo por cada um de nós, porque amanhã seremos nós.
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