JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Covid-19: Licenciamento voluntário ou libertação das patentes das vacinas?

Vai pelo mundo um grande alarido sobre a tema das patentes das vacinas para a covid-19.
A questão é séria. Atualmente a quase totalidade das vacinas está a ser aplicada no mundo do capitalismo avançado. Os países mais ricos estão a vacinar a população a ritmos acelerados de tal modo que, em muitos deles, a imunidade de grupo será atingida no verão deste ano.
Contudo, a sensação de segurança do bloco ocidental em resultado da vacinação massiva pode ser ilusória. Se o vírus continuar a circular nos países pobres pode muito bem gerar variantes para as quais as vacinas atuais não sejam eficazes. Na verdade, este é um dos casos em que ou estamos todos seguros ou ninguém estará a salvo.
Para criar imunidade de grupo a nível mundial será necessário aplicar cerca de 11/12 biliões de vacinas. Até agora terão sido produzidas cerca de 1,2 biliões, ou seja, pouco mais de 10% do total que seria necessário.
Produzir mais vacinas e mais depressa é, portanto, indispensável para chegar a um patamar mínimo de segurança global.
Nesse quadro parece perfeitamente razoável o levantamento das patentes. Essa possibilidade está prevista na organização internacional do comércio, já foi utilizada no passado e, se a atual emergência não justifica o uso de medidas excecionais, porventura nenhuma outra circunstância a justificaria.
Acresce que os Estados Unidos, os habituais renitentes destas coisas, apoiam a libertação das patentes.
Aparentemente os astros estão alinhados para que se possam produzir livremente cópias das vacinas, assim haja conhecimento e capacidade produtiva neste nosso vasto mundo.
No entanto, eu seria cauteloso em relação à libertação das patentes.
Não porque compre o argumento conservador de que a libertação de patentes prejudica o investimento futuro em fármacos inovadores.
O argumento conservador diz-nos que não convém perturbar o sistema que, gostemos ou não, nos últimos anos nos deu, por exemplo, a cura de doenças letais como a hepatite C apenas com uns quantos comprimidos ou o enorme desenvolvimento na cura de muitas variantes de cancro.
Todos sabemos que o investimento em fármacos inovadores é um investimento volumoso – em geral na casa de biliões de dólares – e extremamente arriscado. Muitas vezes investe-se para, no final, não obter um cêntimo de proveitos.
Veja-se, a propósito, o que se passa com a investigação no domínio dos fármacos para as demências. A indústria já investiu dezenas de biliões de dólares na busca de fármacos eficazes para prevenir ou curar as demências e, até agora, sem um único resultado animador.
Podemos daqui tirar um par de conclusões.
Desde logo que só empresas muito lucrativas podem estar neste negócio da farmacologia de vanguarda. Só empresas com balanços muito fortes podem gastar 2 ou 3 biliões de dólares em projetos que, no fim, podem dar em nada.
Segundo que, num ambiente em que o risco é enorme e as somas envolvidas são gigantescas, é difícil imaginar que o progresso não fosse prejudicado caso a propriedade intelectual estivesse desprotegida e (ou) se as empresas não tivessem a possibilidade de recuperar os investimentos através de períodos de exclusividade nos fármacos que inventam.
Mas, por outro lado, o modelo atual coloca uns quantos problemas éticos complicados.
Por exemplo, a cura para doenças raras coloca um problema ético difícil de resolver. Pode ser necessário investir biliões de dólares para chegar a um fármaco para uma doença que depois tem um número de doentes muito pequeno. Daqui pode resultar que a cura para algumas doenças possa custar mais de um milhão de dólares por cada doente. Quem pode pagar tais somas?
Mesmo em casos em que o número de doentes é grande o problema ético pode colocar-se. Todos nos lembramos como a Gilead, quando descobriu a cura para a hepatite C, fixou o preço do medicamente na casa das dezenas de milhar de dólares por paciente. Em termos práticos significava que a cura existia, mas o preço era de tal modo elevado que a esmagadora maioria dos doentes continuaria a morrer.
É aceitável que a cura exista, que a produção material do fármaco custe uns irrisórios cêntimos marginais, mas que pessoas continuem a morrer porque não podem pagar o preço fixado pelo fabricante?
Não é moralmente aceitável que pessoas morram nestas circunstâncias, contudo, não fosse o objetivo do ganho com o fármaco por parte dos investidores e a cura simplesmente nem sequer existiria.
Trata-se de um tema muito complexo ao qual talvez voltemos um dia destes.
O argumento liberal não faz sentido no caso das vacinas contra a covid-19. Ninguém duvida que a proteção da propriedade intelectual é fundamental para o progresso da indústria como também ninguém duvida que a quebra das patentes neste excecionalíssimo caso não poria em causa o modelo atual de progresso na investigação farmacêutica.
Contudo, ainda assim, não tenho a certeza que libertar as patentes seja a melhor solução para aumentar rápida e drasticamente a produção de vacinas.
Seria uma boa solução se existisse capacidade produtiva disponível não utilizada que pudesse ser mobilizada muito rapidamente.
Não é garantido que seja esse o caso presente.
Parte das vacinas para a covid-19 baseiam-se numa tecnologia nova, base mRNA, cujo domínio não é pervasivo. A produção de uma vacina mRNA implica o uso de 80 a 100 patentes e, mesmo para o mais preparado fabricante de genéricos, não é fácil construir rapidamente uma visão global do processo produtivo.
Por outro lado, as cadeias de valor são muito complexas - utilizam-se até 280 componentes que são produzidos em 19 países. Não é fácil coordenar uma cadeia de valor desta complexidade para quem não esteve envolvido no processo de criação do produto original. Com tempo seria certamente possível – as coisas só são impossíveis até serem feitas. Mas tempo é justamente o que o mundo não tem.
A minha conclusão não é, de todo, que a atitude correta dos poderes públicos seja fazer nada.
Porventura, mais eficaz que simplesmente libertar patentes e ficar à espera da iniciativa privada, seria estabelecer incentivos para que as empresas que detêm a propriedade intelectual sejam “convidadas” a licenciar a tecnologia para uma produção tão massiva e rápida quanto possível.
Que fique claro que não me chocaria nada o cancelamento temporário das patentes. O meu receio é que, mesmo com patentes abertas, a produção não cresça no curto prazo e que as expetativas de biliões de seres humanos saiam frustradas. As consequências podem ser tremendas – mais ódio às elites, mais populismo rasteiro, mais desinformação…
Não seria nada bom!
 

 

Data de introdução: 2021-06-09



















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