1 - Acabo de ver a final do Campeonato da Europa de futebol sub-21, em que Portugal foi finalista, infelizmente vencido, após uma campanha de absoluto mérito dos jovens representantes do emblema das quinas.
Não interessa agora o resultado da final, mas apenas valorizar o mérito: dos jogadores e do seu treinador, Rui Jorge, a quem se devem muitos dos êxitos pretéritos da jovem selecção – entre eles uma outra final, em que fomos igualmente derrotados.
A campanha da selecção tem-se desenvolvido discretamente, fora dos holofotes da comunicação social, longe do aparato que normalmente acompanha o desempenho dos seniores.
Este mundo, dos grandes, é, na verdade, um outro mundo – onde se movem, normalmente à sombra, à volta e a pretexto dos atletas, dirigentes, intermediários, empresários, comissionistas, donos dos passes dos jogadores e vendedores (e compradores) dos direitos sobre eles – como dos trabalhadores migrantes de Odemira.
Um pouco como sucedia – salvo as devidas proporções – com os escravos de antigamente, igualmente vendidos e comprados como se fossem coisas – que o eram, juridicamente.
Também eram valorizados e cotados consoante os seus atributos e os seus méritos na arena.
Claro que estou a exagerar: ninguém pagava aos escravos o que hoje se paga às estrelas dos relvados, nem havia jornais para nos dar conta da sua vida faustosa e do glamour das festas que organizam, ou da frota de automóveis ou das vivendas de luxo que exibem; nem, mais prosaicamente, para denunciar marquises na varanda.
Mas, quando leio nos jornais notícias a dizer que o empresário A comprou – ou vendeu - x% dos direitos sobre o jogador B, não consigo deixar de pressentir um insólito paralelismo simbólico que, oculto sob roupagens festivas, esta compra e venda apresenta com o mercado de escravos.
2 – Os jovens representantes do nosso país jogam em clubes portugueses.
O Público de hoje recorda que a equipa base da selecção é constituída por jogadores do FCP, que procedem dos escalões de formação do clube – isto é, não foram ainda colocados no mercado de transferências, altura em que começam a render para os donos da bola.
O mesmo se diga dos restantes elementos da equipa.
Representam ainda, em grande medida, a cultura do que foi a natureza e a origem dos clubes de futebol: associações de cidadãos, colectividades, de fortes sentido comunitário, independentes dos poderes político ou económico, cimentados pelo fervor clubístico e pelo amor à camisola.
Esse mundo está a acabar.
Em breve, esses jovens atletas que hoje aplaudimos serão engolidos pelo mesmo caldeirão de interesses para onde foram remetidos os seus colegas mais velhos.
Ou terão que mudar de profissão.
Os interesses particulares dos donos da bola transformaram o espírito de “association” – palavra ainda presente na designação oficial de que UEFA e FIFA constituem acrónimos -, numa voragem mercantil, de capitalismo de casino, que não produz riqueza nem contribui para o progresso ou para a prosperidade do País, mas que serve os interesses particulares de quem controla esse mundo fora do controlo e do escrutínio público que é o mundo do futebol.
Criaram, a partir das associações desportivas que representavam genuinamente os sentimentos solidários de pertença dos simpatizantes, uma ficção jurídica, as sociedades anónimas desportivas, empresarializando o saudável fervor clubista – e, de caminho, tomando posições particulares relevantes e tornando-se inamovíveis no exercício do poder nessas sociedades e na partilha dos lucros – mesmo que não haja lucros.
No futebol de alto coturno, deixou de valer, para o que é importante, o princípio democrático de “um homem, um voto”, para tudo se decidir entre os titulares do capital dessas sociedades – que são quem compra e vende os jogadores.
Costumo dizer que as SAD são, em geral, como um cancro - que nasce no seio e a partir de um corpo saudável, mas depressa absorve e toma conta desse corpo são, onde surgiu.
São, na verdade, em geral, uma caricatura dos valores desportivos.
Ainda hoje me espanto com a confusão que persiste, e que a comunicação social veicula, como se fosse a mesma coisa, entre as SAD e os Clubes.
A ponto de os adeptos de um clube se regozijarem num dia com os grandes negócios de venda dos jogadores que aplaudiram na véspera, como se os resultados do negócio fossem uma vantagem para o clube – e não um enriquecimento para os accionistas donos da SAD; por sua vez, dona do clube.
3 – Não se trata de um mal próprio, de uma inovação lusitana.
Este modelo de apropriação por interesses privados do entusiasmo que o futebol suscita, expropriando para o mundo obscuro dos negócios e transacções bolsistas e para figurinos mercantis a igualdade associativa e a pertença comunitária que está na génese dos clubes desportivos, constitui uma vinculação que nos é imposta pela UEFA e pela FIFA.
Que exigem ainda, para além da empresarialização e privatização da actividade futebolística, o afastamento da jurisdição do Estado e a criação de uma justiça própria, com desaforamento dos tribunais comuns e criação de órgãos e instâncias privativas para o julgamento das causas desportivas.
Tudo em circuito fechado.
Um Estado dentro do Estado! E fora das leis do Estado!
Junta-se a fome com a vontade de comer!
Penso que terá sido esta ideia, que insidiosamente se vai infiltrando em muitas consciências, de que as leis gerais do Estado não se aplicam ao mundo do futebol e aos interesses desse mesmo mundo, que terá levado as autoridades públicas – Governo, DGS, autarquias locais – em conúbio com alguns clubes desportivos – até do meu! -, a permitir a manifestação dos adeptos do Sporting, na sequência da conquista do campeonato, e a aceitar as migalhas que outros países rejeitaram, para realizar intramuros a final da Taça dos Campeões Europeus, com milhares de adeptos ingleses, dentro e fora do estádio, a quem foi permitido o que aos portugueses fora recusado – e bem… - pelas mesmas autoridades.
Contrariando as regras de afastamento social e da obrigatoriedade do uso da máscara, em vigor no País, mas afastadas em homenagem aos donos da bola – aumentando, por essa via, a difusão da infecção que tanto nos tem custado a conter.
E fazendo-nos corar de vergonha alheia, ao verificar a submissão a tais interesses espúrios por parte dos nossos eleitos.
Para quem nos enche diariamente os ouvidos com o princípio da precaução, como determinante na definição da estratégia de saúde pública, o mais que se pode dizer é que se esqueceu da precaução nos balneários – ou fez-se esquecido.
4 – A dimensão comunitária dos velhos clubes de futebol, de dimensão associativa, ligados aos bairros e às cidades, próximas dos seus habitantes, espaço de igualdade entre todos e de abertura à formação e actividade desportiva das crianças e jovens locais, é uma característica que é comum às Instituições de Solidariedade.
Também estas, como aqueles, próximas das pessoas, fundadas num quadro de valores de que andam afastados interesses egoístas e particulares, tratando por igual todos quantos se acercam, promovendo a cidadania e a educação para a democracia e para a liberdade, prestando serviços de qualidade sem olhar a cor, credo, raça, religião ou situação económica.
Mas também sob ameaças do mesmo tipo das que desconfiguraram os antigos clubes desportivos, ao criarem no seu seio sociedades anónimas e concentrarem sob forma não democrática o exercício do poder.
Com efeito, começam a regressar, com sabor a mofo, alguma vozes ao espaço público, com influência política, de diversos quadrantes, a acenar com a necessidade de empresarialização das Instituições, criando ou transformando-se em “empresas sociais” – mas perdendo a solidariedade ; ou com a concentração e fusão de Instituições, para ganhar escala – mas perdendo a proximidade; ou com a alteração do modelo de gestão – mas perdendo a autonomia.
Não me imagino a ver escrito, a assinar as minhas crónicas no Solidariedade, Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde, SAAS (Sociedade Anónima de Acção Social); ou CSE, Responsabilidade Limitada).
Nunca verei, certamente...
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