Já todos sabíamos que para deixar um planeta habitável às próximas gerações são necessárias mudanças radicais no nosso modelo de produção e de consumo.
O que, porventura, não tínhamos realizado é a dimensão assustadora da tarefa nem, provavelmente, a totalidade das consequências. Um estudo recente da Agência Internacional da Energia (IEA), o órgão das Nações Unidas para a segurança energética, veio colocar alguma definição quantitativa no tema.
Seguem alguns indicadores para se ter uma noção da dimensão verdadeiramente dantesca da empreitada.
As consequências não são menos assustadoras. Distribuem-se por quase todos os aspetos do viver social, desde a economia à política passando pelos hábitos de consumo.
Num cenário de Emissões Líquidas Zero (NZE) em 2050, todos os novos investimentos em combustíveis fósseis deveriam ser cancelados. Em 2030 o consumo de petróleo deveria descer para 75 mm de barris por dia e em 2050 deveria estar na casa dos 24 mm de barris por dia, ou seja, menos que a atual produção da OPEP. Os preços cairão para 24 USD por barril em 2050. Apenas países com custos de extração muito baixos poderão continuar na indústria. Angola, por exemplo, estaria fora de combate. Os países produtores de petróleo terão de reinventar as suas economias e as suas sociedades em prazos muito curtos. Sabendo como muitos desses países já são politicamente instáveis podemos imaginar a disrupção global que nos espera.
As necessidades de investimento são colossais. Atualmente o mundo investe em energia cerca de 2,3 triliões (milhões de milhões) de USD por ano. Em 2030 esse número teria que mais que duplicar.
Mas vamos admitir que tudo isto é exequível – que existe capacidade para o investimento, que podemos viver com a disrupção política e social da transição.
Ainda assim nada estaria garantido, faltariam dois ingredientes fundamentais.
O primeiro é a tecnologia e o segundo é o comportamento dos consumidores.
A maior parte das tecnologias ainda não existe, pelo menos em versão comercialmente viável. Por exemplo, não existe ainda nenhum modelo eficiente de captura e armazenamento de CO2. A tecnologia do hidrogénio está a dar os primeiros passos. Calcula-se que metade das reduções de emissão de CO2 em 2050 resulte de tecnologias que estão ainda em fase de demonstração ou protótipo.
Finalmente tudo vai depender dos consumidores. Mais de metade das reduções de conteúdo carbónico depende de escolhas das pessoas (modelo de mobilidade, equipamentos domésticos, opções alimentares, etc.) as quais, como sempre, vão depender de fatores culturais e de incentivos económicos.
Que pensar de tudo isto?
O primeiro pensamento que me ocorre é a possibilidade de a IEA estar enganada. Já se enganou muitas vezes. Ainda há um par de anos a IEA dizia-nos que a transição, se bem que inelutável, seria lenta. Por exemplo, o declínio do petróleo seria muito mais suave. Previa-se um pico de consumo de 125 mm de barris por dia (cerca de 25% acima do atual) e, por volta de 2040, o consumo global seria próximo dos hodiernos +/- 100 mm de barris por dia.
Podem estar enganados? Sim, sem dúvida! Países membros da IEA que estão seriamente comprometidos com a transição energética, como o Japão ou a Austrália, já disseram que vão continuar a investir em combustíveis fósseis.
Um segundo pensamento tenta perscrutar as intenções. Que pretende a IEA com este plano apocalíptico?
A IEA é um organismo das UN que foi criado para estudar e assessorar os líderes mundiais em matéria de segurança energética.
Ora o que consta do estudo é tudo menos segurança. Dependendo de fatores que não se controlam (tecnologia, atitudes culturais, capital de risco disponível, etc.) o que o plano prevê é tudo menos seguro.
Porventura, o que a IEA está a tentar mostrar é que os objetivos políticos podem ser muito bonitos, mas não são realizáveis e que, se o mundo não quer enfrentar uma crise de dimensões colossais no futuro próximo, deve realinhar os objetivos em matéria de energia.
Talvez, talvez seja um apelo para descer à terra…
Mas há um terceiro pensamento, quiçá mais perturbante, que não consigo evitar.
Eu e, acredito, a maioria dos seres humanos, pensa habitualmente em termos lineares, mas a realidade pode ser exponencial.
Quem, como eu, se aproxima do ocaso da vida, já teve repetidas oportunidades para ser surpreendido por evoluções exponenciais em temas que, a priori, víamos como de caminho linear.
Nada demais, apenas humano, demasiado humano, como diria Nietzsche.
O nosso sistema cognitivo não evoluiu para perspetivas exponenciais.
Aos nossos ancestrais, quando viviam na savana africana, bastava um mínimo de informação e um tratamento aproximado, para intuir que um leão podia estar nas proximidades e que era de boa política buscar abrigo. Não era indispensável uma reflexão profunda sobre a relação predador/presa para chegar à decisão.
É, por isso, compreensível, que o nosso sistema de julgamento do dia a dia utilize perspetivas lineares, mais simples, mais fáceis de aprender e trabalhar. Para quase tudo o que fazemos na vida a perspetiva linear é perfeitamente suficiente.
Quando nos sentimos esmagados pela perspetiva da IEA, pergunto-me se não estaremos aqui a cometer o pecado preguiça? Não estará a parte mais intuitiva e preguiçosa do nosso sistema cognitivo a arrastar-nos para uma visão linear de um processo a que mais conviria uma abordagem exponencial?
Temo que seja assim!
Finalmente um quarto pensamento sobre um trema que já tratámos numa crónica anterior, a saber, a larga e profunda linha de fratura que separa a Europa e a América neste particular.
De um lado a América, uma nação jovem, transbordante de entusiamo e iniciativa, que confia no engenho e na criatividade humanas; do outro, uma sociedade mais madura, mais confiada no exercício da razão e no controlo da testosterona, que prefere confiar na regulação e nas políticas públicas.
Quem vai prevalecer? Como organizar a transição global quando as perspetivas são tão divergentes? Quando tudo são dúvidas?
A transição climática é um daqueles casos em que a única que podemos saber é que não sabemos.
Contudo, como fazer nada não é alternativa, teremos de navegar à vista da costa e esperar que o mar não nos atire contra os rochedos. E aqui, como no mar, os mais perigosos são os que não se vêm.
Não há inqueritos válidos.