Dediquei algumas das últimas crónicas ao tema da transição climática.
Creio que já é claro, exceto para uma ínfima minoria de negacionistas, que o que nos espera é uma verdadeira hecatombe se nada for feito para mitigar a ação do homem sobre o clima.
As recentes catástrofes ambientais, como as chuvas diluvianas na Alemanha, Bélgica, China e Estados Unidos, ondas de calor na Grécia, Turquia ou Califórnia associadas a incêndios devastadores ou a progressiva desertificação no sudeste de Espanha, são a evidência empírica da cada vez maior frequência de fenómenos climáticos extremos.
Conforme procurei demonstrar numa crónica anterior a dimensão da empreitada que temos pela frente é dantesca. As necessidades de investimento são colossais, a maioria das tecnologias ainda não existem ou estão em fase de protótipo e a harmonia política global que será essencial para sermos bem-sucedidos está longe de estar garantida.
Temos a felicidade de viver na Europa que é a geografia do planeta onde a questão da transição climática está mais estudada, onde existem objetivos mais exigentes e onde o sistema político está mais empenhado nas soluções.
E, no entanto, mesmo aqui no velho continente, as coisas estão longe de ser fáceis.
A União Europeia comprometeu-se com a redução em 50% das emissões em 2030 e zero líquido de emissões (NZE) em 2050 com referência a valores de 1990.
Na hora das proclamações não terá sido difícil conseguir o entusiasmo de todos, contudo, agora que é necessário começar a concretizar as medidas as coisas já não são tão simples. O problema é que quando descemos ao terreno coloca-se a velha e inevitável questão: quem paga?
A União Europeia é a única geografia do mundo a ter um mercado de emissões funcional. Atualmente a necessidade de pagar pelas emissões de carbono atinge um número reduzido de indústrias notoriamente poluentes que, em certas circunstâncias, se vêm obrigadas a comprar licenças para emissões adicionais.
O preço das licenças tem subido, está atualmente em cerca de 55 euros a tonelada (era sensivelmente metade em 2019) o que reflete a crença dos especuladores de que a política comunitária vai tornar a oferta de licenças cada vez mais escassa.
O problema está em que, se a Europa (e o mundo) realmente querem enfrentar o problema é necessário alargar o sistema de limites às emissões (ou aquisição de licenças quando os limites são ultrapassados), a muito mais setores para além dos que estão atualmente cobertas pelo modelo. A sigla inglesa do modelo é ETS e vamos usá-la daqui para diante neste texto.
As últimas propostas ventiladas na União Europeia pretendem incluir no ETS os transportes (automóveis, nomeadamente), o aquecimento doméstico, as companhias aéreas e a marinha mercante.
Por outro lado, a União pretende introduzir uma taxa niveladora do carbono sobre produtos importados.
Esta taxa é essencial porque, a não existir, a união estaria a reduzir o carbono que emite apenas para o reintroduzir via importações de países onde as regras não sejam tão apertadas.
Mas tudo isto está a produzir imenso ruído político e está já claro que o caminho vai ser muito acidentado.
Desde logo os países que se vêm afetados pela taxa niveladora do carbono já estão a clamar que se trata de protecionismo pela porta do cavalo. Dá-se o caso de o país potencialmente mais afetado pela taxa niveladora do carbono ser a Rússia, um país com o qual a Europa dispensava adicionar mais um contencioso.
Mas o pior vem de dentro, da oposição interna.
Um bloco de países (França, Espanha, Itália, Hungria, Letónia, Irlanda e Bulgária) opõe-se ao alargamento do ETS alegando que a inclusão dos transportes e do aquecimento doméstico vai fazer cair sobre os mais frágeis uma parte excessiva da conta da transição climática.
É certo que a União também pretende instituir um fundo de 72 biliões de euros justamente para acudir aos mais carenciados em matéria energética.
O problema aqui é que, se o fundo até poderia mitigar as atuais dissensões, está a criar outras. Os países frugais, como a Holanda, temem que o fundo se eternize num sistema de transferências permanentes.
A França tem tido até agora uma posição “centrista”, ou seja, não se opõe ao alargamento do ETS, mas recomenda prudência.
A prudência francesa não é casual. A França já provou deste veneno. Há um par de anos Emmanuel Macron ensaiou uma reforma fiscal que basicamente consistia em aliviar o imposto sobre as fortunas e carregar na imposição sobre os combustíveis, justamente apelando para a necessidade de conter as emissões de carbono.
O resultado foi a revolta dos gilets jaunes. O que estava em causa, então como hoje, era justamente saber quem paga a transição climática. Os habitantes dos subúrbios, os mais pobres e que dependem do automóvel para quase tudo, tiveram alguma dificuldade em perceber porque haviam de ser eles a pagar ainda por cima numa altura em que se aliviava a tributação sobre as fortunas.
Ninguém duvida que a transição climática vai ter custos colossais e que alguém tem de pagar, todos temos que pagar.
Vamos pagar de várias formas. Desde logo com custos mais altos nos produtos intensivos em carbono – mobilidade mais cara, custos de habitação mais elevados, etc. Também os produtos importados com alto teor de carbono terão preços mais elevados.
Mesmo que a energia não fique mais cara - hoje é possível produzir energia elétrica de fontes renováveis – solar ou eólica, por exemplo - mais barato que a partir de combustíveis fósseis – vai ficar mais caro tudo o que a usa. Por exemplo, um frigorífico pode ter um custo em energia mais baixo, contudo, se avariar e tiver de ser substituído, o novo aparelho será tendencialmente mais caro se for produzido livre de carbono.
É aqui que a falta de jeito dos políticos franceses deveria ser vista como uma história cautelar.
Se o custo da transição climática é gigantesco, o custo de não fazer nada é imensamente maior, ou seja, não fazer nada não é opção. No entanto, a distribuição da fatura da transição tem de ser gerida com pinças e obviamente não pode carregar o essencial do fardo sobre os mais pobres.
A experiência francesa demonstra que a transição climática pode ser impossível se os custos forem desproporcionadamente atirados para cima dos mais desfavorecidos.
O caminho não é fácil, a tarefa é titânica, no entanto, a humanidade não tem alternativa a não ser o inferno.
À Europa cabe liderar este processo e temos de acreditar que vai estar à altura do desafio.
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