JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Os maus caminhos por onde vão os bancos centrais

Algures nestas crónicas terei referido a minha angústia sobre o papel dos bancos centrais nas economias de capitalismo avançado.

Acontece que, porventura sem nos darmos conta, a natureza dos bancos centrais e as funções que lhe estão atribuídas estão a mudar e estou longe de ter a certeza de que estejam a evoluir no bom sentido.

As alterações progressivas, em passos minúsculos, quase impercetíveis, quando ao fim de algum tempo acumulam massa crítica, podem mudar a natureza das coisas e, em geral, estas mudanças não programadas acabam mal.

Os Estados Unidos começaram a sua intervenção no Vietnam com uma presença modesta, não mais que uns quantos consultores para apoiar o esforço bélico do Sul contra a insurgência comunista do Norte.

Aos poucos, sem que aparentemente ninguém o desejasse, a natureza da missão foi evoluindo para a acabar como todos sabemos, numa guerra total, cruel e, finalmente, numa humilhante derrota da América.

Os bancos centrais existem para controlar a oferta de moeda e a inflação – é assim estatutariamente no BCE – e, nalguns casos, como acontece nos Estados Unidos, o banco central tem também como objetivo a maximização do emprego.

Ninguém ignora que, mesmo quando os objetivos dos bancos centrais estão limitados ao mínimo (oferta de moeda e inflação), o seu papel é eminentemente político.

Desde logo isso traz um problema porque decisões políticas, de enorme importância para a vida dos cidadãos, são tomadas por pessoas que não são eleitas e que não estão sujeitas ao escrutínio democrático, ou seja, ao contrário dos políticos comuns, não podemos mandar embora os dirigentes do banco central nas próximas eleições, caso se mostrem corruptos ou incompetentes.

Trata-se de um equilíbrio difícil. Por um lado, é necessário garantir a independência dos bancos centrais em relação aos governos. Vimos recentemente na Turquia como um banco central às ordens do governo pode fazer muito mal à economia e à sociedade. Mas, por outro lado, é preocupante que demasiado poder fique nas mãos de profissionais a quem o controlo democrático não se aplica.

Podem mesmo colocar-se situações limite como aconteceu recentemente em Portugal. Um governador do Banco de Portugal, sobre quem pesavam dúvidas sérias quanto à qualidade no exercício do cargo e que um governo legítimo gostaria de ter substituído, manteve-se no cargo devido á proteção estatutária do BCE.

Contudo, se não é fácil fugir das contradições intrínsecas ao modelo de bancos centrais que vigora desde meados dos anos oitenta, já não será prudente acrescentar outros problemas que manifestamente são evitáveis.

Os grandes bancos centrais, nomeadamente a Reserva Federal Americana e o BCE, parecem querer envolver-se em questões como, por exemplo, a crescente desigualdade na distribuição da riqueza ou a transição climática.

Ninguém duvida da importância desses temas. O que não é garantido é que faça parte das funções dos bancos centrais cuidar de tais coisas, por um lado, e, por outro, que a política monetária seja o meio adequado para os resolver.

A verdade é que, aos poucos, vamos achando natural que os bancos centrais nos falem de crescimento inclusivo, de combate à desigualdade ou de fazer frente às alterações climáticas.

Não é saudável por várias razões.

Desde logo porque as funções estatutárias dos bancos centrais são suficientemente exigentes e dispensam-se distrações com temas que outros devem conduzir. Supervisionar e regulamentar o setor financeiro, controlar a oferta de moeda e orientar as taxas de juro são tarefas a tempo inteiro e em exclusividade. Mesmo estas implicam um papel eminentemente político e devemos estar conscientes dos riscos que sempre comporta ter tanto poder nas mãos de pessoas não democraticamente eleitas.

Em segundo lugar, é tudo menos garantido que a política monetária seja o instrumento adequado para lidar com temas como, por exemplo, a desigualdade.

Vejamos o que vai atualmente pelo mundo.

Para combater a crise que emergiu em 2008/2009 e, depois, para enfrentar a pandemia, temos atualmente a política monetária mais expansionista da história.

Inevitável? Talvez!

Contudo, há uma diferença qualitativa entre a crise financeira de 2008/2009 e a pandemia. É que, em 2008/20089 os bancos centrais ficaram a falar sozinhos no combate à crise – os governos, depois de algum apoio fiscal inicial, abandonaram o campo de batalha.

Com a pandemia já não foi assim, felizmente. Os governos colocaram no terreno múltiplos modelos de suporte orçamental e evitaram o que poderia ter sido uma tragédia económica e social em cima da tragédia sanitária.

Num primeiro momento da pandemia a expansão do suporte monetário parecia inevitável.

O problema aqui, como em muitas coisas da vida, é que raramente aplicamos a sabedoria de um ditado russo que diz que nunca devemos entrar numa sala sem conhecer as portas de saída.

Foi fácil decidir a expansão do apoio monetário – o problema é que agora ninguém sabe como acabar com ele - a política monetária está capturada pelos mercados.

Em boa parte, devido à expansão monetária os mercados estão numa euforia descontrolada e um aperto monetário súbito pode ter consequências catastróficas não só nos mercados, mas também nas economias – em larga medida os bancos centrais estão de mãos atadas. Se não fazem nada arriscam-se a assistir a uma espiral inflacionista, a mercados ineficientes, a distorções na aplicação de capital e por aí fora, se decidem atuar arriscam-se a colocar os mercados em espiral de correção e as consequências podem não ser bonitas.

Finalmente fica evidente como a política monetária pode não ser o instrumento adequado para lidar com assuntos como a desigualdade na distribuição da riqueza, dos rendimentos ou das oportunidades.

Devido à expansão monetária da última dúzia de anos, a inflação no valor de todo o tipo de ativos, ações, títulos de dívida, casas, etc., fez os ricos ainda mais ricos e os pobres, pelo menos relativamente, ainda mais pobres. Nunca houve tantos bilionários como nos nossos dias!

Não, de todo! A política monetária não serve para fazer justiça social nem os banqueiros centrais estão democraticamente mandatados para tratar de tais coisas.

É bom regressar aos fundamentais – a política monetária serve para controlar a oferta de moeda, orientar as taxas de juro e até podemos conceber que o volume de emprego compatível com uma economia não inflacionada possa ficar dentro do mandato de um banco central como acontece nos estados unidos.

Mesmo isto já é suficientemente perigoso porque estamos a delegar em profissionais sem escrutínio democrático decisões eminentemente políticas e potencialmente com implicações profundas no tecido social.

Aumentar a atual área de risco, permitindo aos bancos centrais um ainda maior escopo de decisão política parece-me manifestamente imprudente. Talvez seja altura de ser claro nesta matéria antes de, sem nos apercebermos, termos parido um par de monstros descontrolados.

 

Data de introdução: 2021-10-13



















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