1 - “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. /…Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém/ vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la./ … quem ressuscita esses milhões, quem restitui/ não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?/ Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes/ aquele instante que não viveram, aquele objecto/ que não fruíram, aquele gesto/ de amor, que fariam “amanhã”./ E, por isso, o mesmo mundo que criemos/ nos cumpre sempre tê-lo com cuidado, como coisa/ que não é só nossa, que nos é cedida/ para a guardarmos respeitosamente/ em memória do sangue que nos corre nas veias,/ da nossa carne que foi outra, do amor que/ outros não amaram porque lho roubaram.”
Vou buscar a Jorge de Sena, e às suas “Metamorfoses”, estes excertos da “Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya”, que explicitam, certamente melhor do que eu o faria, alguns dos sentimentos que o actual quadro de guerra na Europa nos suscita.
A agressão da Rússia à Ucrânia constitui o mais recente exemplo deste roubo, mais do que de território, das vidas de tantos que o destino fez nascer e viver naquela parte mais oriental da Europa, “por serem fiéis a um deus, a um pensamento,/ a uma pátria, uma esperança”, como escreve, noutra passagem, Jorge de Sena. (… “às vezes, por serem de uma raça, outras/ por serem de uma classe, expiaram todos/ os erros que não tinham cometido …”
“Expiaram todos/ os erros que não tinham cometido”; de que estavam inocentes, portanto.
Sempre me causou estranheza, quando se trata de relatar os efeitos mais graves de uma guerra, ou de uma agressão militar, trazer à colação o conceito de “vítimas inocentes”, normalmente os civis – como se não fossem igualmente “inocentes” os que morrem em defesa da sua pátria; ou mesmo os soldados agressores, que tantas vezes são apenas carne para canhão ao serviço involuntário da ambição dos seus dirigentes políticos.
Um dos episódios mais pertinentes desta “inocência” dos agressores está no piloto russo abatido e capturado pelos ucranianos, a quem estes permitem que telefone à sua mãe, e que lhe confessa que partiu para a invasão sem saber ao que ia.
São, apesar de tudo, vantagens da tecnologia, que nos permite acompanhar a invasão em directo e ao detalhe, pela televisão e pelos telemóveis, nos torna mais próximos das aflições sofridas pela população agredida e ajuda a desmontar a propaganda, as mentiras e os pretextos que o agressor vai debitando, para “legitimar” as suas acções criminosas.
2 – Nasci após o fim da Segunda Grande Guerra e vivi até agora em situação de paz, no meu País e naquela parte da Europa em que Portugal se integra.
É certo que tivemos a Guerra Colonial, mas essa não era uma guerra internacional, entre países independentes, antes constituiu ainda um episódio, um dos últimos, do movimento de descolonização que percorreu o pós-Guerra e conduziu ao desmoronamento dos impérios intercontinentais; e o conflito na ex-Jugoslávia – mas que não era uma guerra no sentido normal do termo, mas um efeito dos ajustamentos decorrentes da fragmentação da Federação Jugoslava e da sua transformação em vários Estados autónomos.
O que a invasão da Ucrânia pela Rússia traz de novo é a ameaça por Putin da utilização do armamento nuclear – ameaça que não visa apenas a Ucrânia, mas todos os países que integram a NATO, incluindo Portugal.
Tal sugestão representa um up grade relativamente à anexação da Crimeia, “manu militari”, aqui há alguns anos.
Vivi a maior parte da vida num mundo que, no aspecto bélico, era eufemisticamente designado como assente no “equilíbrio do terror”, que se traduzia numa predominância do Hemisfério Norte e na partilha da influência nesse Hemisfério entre, por um lado, o Pacto de Varsóvia, ao serviço da União Soviética; e, por outro, a NATO, comandada pelos Estados Unidos da América.
Quer a União Soviética, quer os Estados Unidos, dispunham – como ainda dispõem – de um arsenal nuclear bastante para destruir este planeta em que habitamos; e, quer um bloco, quer outro, sabiam que o uso de armamento nuclear por parte de um bloco, contra o outro, seria seguido de resposta simétrica, com o risco de destruição do planeta; e seguramente com a destruição do adversário.
Era esse saber comum que assegurava a paz, na medida em que cada um dos blocos sabia que um ataque ao outro se traduziria na sua própria destruição.
O “equilíbrio do terror” era isso – e a “Guerra” era “Fria”.
E foi esse equilíbrio que garantiu a paz na Europa, “do Atlântico aos Urais”, na segunda metade do século XX.
Nenhum dos lideres desses blocos político-militares alguma vez ameaçou sequer o outro com o uso do armamento nuclear; mesmo o caso da Baía dos Porcos, em Cuba, que tem sido muito invocado pelos russófilos como idêntico, nos seus fundamentos, ao da invasão da Ucrânia, não teve que ver com qualquer ameaça nuclear, mas apenas com a colocação de mísseis em território próximo dos Estados Unidos.
A União Soviética acabou, desagregando-se em três Estados independentes e autónomos, por meio de um tratado subscrito pelos três: a Rússia, a Ucrânia e a Bielorrúsia.
Quer dizer, a invasão da Ucrânia, país independente e autónomo, para além de uma violação do direito internacional, como é entendimento comum, representa ainda uma violação concreta pela Rússia do tratado por ela mesmo assinado, de transformação da Comunidade de Estados Independentes, antiga União Soviética, em três Estados verdadeiramente independentes.
Putin quer anexar a Ucrânia, dizendo que esta não tem direito a existir como Estado autónomo – voltando aos limites da antiga União Soviética, que a própria Rússia quis desmantelar.
O mesmo é dizer que não é um país fiável no contexto internacional – pois que rasga os contratos que celebra, não se podendo acreditar na sua boa fé em qualquer acordo que venha a celebrar.
Pois não é certo que já ameaçou renunciar ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares?
E não é também verdade que acordou, em negociações de paz, o estabelecimento de corredores humanitários para a população de Mariupol – apenas para violar tal acordo e mais facilmente poder bombardear a população em fuga, aumentando o terror e cuidando, assim, vencer a resistência moral do agredido?
3 – No tempo da presidência de Donald Trump, as pessoas de bem inquietavam-se com o facto de alguém tão inchado de si próprio e desprovido de qualquer escrúpulo na instrumentalização dos outros ter poder de decisão na utilização de arsenal nuclear para prosseguir interesses próprios; mas o sistema americano, apesar de tudo, como é próprio das democracias, possui mecanismos de controlo e limitação do poder das lideranças, mesmo tão insólitas quanto Trump – tanto assim que foi possível corrê-lo, mesmo contra a sedição promovida pelo Ex-Presidente para impedir a posse do sucessor.
Mas não sabemos como é na Rússia; e se a Putin está confiado o poder – ou se ele o confiou a si mesmo – de, sozinho, poder acabar com este mundo.
Quem, sendo alto responsável pelo KGB ainda no tempo da União Soviética, vem hoje criticar Lenine pela criação da Ucrânia, não é, definitivamente, pessoa de confiança.
No tempo de Lenine, ou de Estaline, muitos foram apagados por menos.
Não há inqueritos válidos.