Quando, no final de fevereiro, tropas russas invadiram a Ucrânia gerou-se uma onda de refugiados, essencialmente, de mulheres, crianças e velhos, a que, mais uma vez, os portugueses não ficaram indiferentes. Sob a égide do Alto Comissariado para as Migrações, no terreno autarquias, IPSS, associações e coletividades diversas e muitos particulares mobilizaram-se e têm contribuído como e com o que podem para ajudar estas pessoas a quem a guerra entrou pela casa adentro sem pedir licença. Baião, um dos primeiros municípios a aderir à operação montada pelo Estado Português, já acolhe 13 refugiados (sete mulheres e cinco crianças) e o SOLIDARIEDADE foi conhecer a história de duas mulheres, que ali encontraram a tranquilidade que lhes permite dormir.
Iryna, 42 anos, e Oleksandra, 36, são ucranianas, irmãs e, agora, refugiadas de guerra. Moradoras nos arredores de Kiev, junto a uma floresta, as irmãs decidiram abandonar as suas casas e fugir quando a primeira bomba lhes caiu perto de casa.
“Decidimos sair quando uma noite ouvimos uma explosão muito perto de nós, uma explosão que aconteceu a cerca de 800 metros das nossas casas. De manhã, a minha irmã veio ter comigo, conversámos e decidimos sair dali e ir para casa de uns familiares em Mukachevo”, começa por contar Iryna.
Foi de automóvel que as irmãs deixaram Kiev, levando consigo Mira, de 14 anos, filha da irmã mais velha, e Mark, de oito, e Nikita, de três, filhos da mais nova.
Deixaram as chaves dos seus apartamentos à mãe, que não quis deixar a sua casa, e seguiram para Mukachevo, onde ficaram 10 dias.
“Porém, não estávamos bem. Não havia grandes condições na casa desses familiares onde estávamos e, ao mesmo tempo, estávamos a perder a nossa saúde mental”, lembra Iryna, ao que a irmã Oleksandra acrescenta: “Todos os dias tínhamos a mala feita, pronta para se tivéssemos que fugir”.
Enquanto o SOLIDARIEDADE conversa com as irmãs, as duas crianças mais novas brincam… Aliás, há muitos brinquedos no chão da sala de estar onde decorre a conversa. Entretanto, chega Mira, uma jovem adolescente de ar tímido e olhar meigo, mas vago, e senta-se no sofá assistindo à entrevista.
“Deixámos tudo. Nunca pensámos em emigrar e agora estamos aqui”, lamenta Iryna, contando que durante a viagem, de quase 4.000 quilómetros, sempre no próprio automóvel, até chegarem a Portugal repousaram na Alemanha, em França e em Espanha.
A vinda para Portugal aconteceu pela intermediação de uma empresa portuguesa que foi à fronteira com a Polónia com o propósito de trazer refugiados. Inicialmente, as irmãs e os três filhos foram para Oliveira de Azeméis, onde está sedeada a referida empresa, mas aí foi-lhes sugerida a estadia em Baião, onde chegaram em meados do mês de março e vivem num apartamento propriedade da Autarquia.
“Aqui é perfeito, toda a gente é muito simpática”, afirma, de sorriso no rosto, Iryna, ao que Oleksandra acrescenta, como quem suspira de alívio: “Aqui, já conseguimos dormir”.
“Quando viemos não tínhamos planos nenhuns, mas aqui não estamos sozinhas, porque temos muito apoio”, afirma Iryna, insistindo na amabilidade demonstrada por toda a gente em Baião, em especial a da colaborado da autarquia que serve de elemento de ligação: “Temos muito apoio, tanto da Câmara Municipal, como dos vizinhos, que são muito atenciosos. Estão sempre a trazer coisas e muitos brinquedos para as crianças. Depois, a Ilda [Borges] tem sido como uma mãe para nós. Estamos muito agradecidas a todos”.
Nas palavras, mas também no olhar é evidente a gratidão para quem as acolhe e procura que nada lhes falte.
No entanto, para trás ambas deixaram os pais, mas Oleksandra também o marido, que trabalha no metro de Kiev, sendo um trabalhador essencial na cidade, e ainda o emprego de coach manager na área bancária. Por seu turno, Iryna mantém o seu emprego na empresa de equipamentos de vigilância, para a qual trabalha remotamente todas as manhãs de segunda a sexta-feira.
E porque a operação de acolhimento em Portugal incorpora também a vertente do emprego, as irmãs já têm um trabalho a tempo parcial numa unidade hoteleira de Baião, aos fins-de-semana, que vão alternando.
Com isto as irmãs afastam os fantasmas da guerra, mas o contacto diário com os familiares e amigos na Ucrânia mantém-nas em constante preocupação e sobressalto.
Do que foram sabendo, contam que uns amigos que estavam em Chernihiv não podiam sair de casa e não tinham comida, nem água.
“Estão fechados em casa para não serem mortos pelos russos e não podem fugir porque de um lado têm os russos e do outro o rio e a ponte para o atravessar está destruída”, acentua Iryna.
Já Oleksandra relata a história de uma amiga que fugiu a pé com as duas filhas gémeas de nove anos de Irpin, onde “estiveram três semanas sem nada, sem luz, sem aquecimento. Agora, as três moram no apartamento de Oleksandra, “onde tem uma situação melhor do que a que viveram em Irpin”.
Sem grandes planos para o futuro, quanto a um eventual regresso, Iryna é cautelosa.
“Se a guerra acabasse hoje, o mais certo era não regressar já amanhã. Tenho receio que a situação ainda não seja segura. Moramos junto a uma floresta e pode ser muito perigoso se houver por lá bombas ou minas”, sustenta, deixando um desabafo: “Ao mesmo tempo sentimos alguma culpa por não estarmos lá para ajudar. Ainda assim, fazemos o que podemos e enviamos dinheiro para os voluntários. Afinal, na Ucrânia ou fora dela toda a gente ajuda como pode”.
E foi neste espírito de solidariedade que os portugueses, uma vez mais, abriram os braços e se predispuseram a ajudar.
Um pouco por todo o país, os portugueses mobilizaram-se e, na esmagadora maioria sob a égide de entidades públicas, disponibilizaram alojamento, bens essenciais e vagas de emprego.
Com o acolhimento a cargo do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e o emprego do IEFP, numa escala mais micro têm sido as Autarquias a articular no terreno todo o processo.
Baião foi um dos primeiros municípios a demonstrar disponibilidade para acolher e apoiar refugiados ucranianos que estivessem dispostos a ir para o concelho.
“Não sei se fomos dos primeiros, mas desde cedo sentimos essa preocupação. Começámos a ver as fronteiras cheias de pessoas que procuravam espaços e uma forma de saírem da Ucrânia e vimos que havia necessidade de alojar toda aquela gente”, afirma Filipe Fonseca, vice-presidente da Câmara Municipal de Baião, com o pelouro dos Assuntos Sociais.
Logo no dia 28 de fevereiro, a Autarquia fez chegar a diversos ministérios e secretarias de Estado a disponibilidade em ceder alguns dos alojamentos do município para albergar alguns desses refugiados que viessem para Portugal
“Na sequência desse primeiro contacto com o Governo, foi-nos informado que o acompanhamento da situação estava a ser feito pelo Alto Comissariado para as Migrações. Também informámos a embaixada da Ucrânia em Portugal, dando-lhe conta da nossa disponibilidade e, a partir daí, foi preparar os alojamentos e proporcionar a quem viesse algum conforto à chegada”, revela o autarca.
Assim, a primeira disponibilidade comunicada a quem de direito foi a de dois apartamentos T3, propriedade da autarquia, no centro da vila, e que, apesar de nunca utilizados, estavam ao serviço no âmbito da Covid-19. E ainda dois albergues, duas antigas escolas primárias que foram reconvertidas, um T4 e um T3.
“De seguida, encetámos contactos com as IPSS do concelho, para saber se havia disponibilidade da parte delas e aí conseguimos mais um reforço na quantidade de alojamentos. Como também com a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Santa Marinha do Zêzere, onde, aliás, já estão cinco pessoas instaladas”, conta Filipe Fonseca, que recorda: “A informação começou a circular e isso levou a que também alguns particulares se associassem a esta operação. Os privados cedem-nos as instalações para que as analisemos, pois é necessário ter alguns cuidados e saber se o espaço tem condições. Para tal, elaborámos contratos de comodato com os proprietários, para os poder utilizar caso sejam necessários”.
Entre a Autarquia, os particulares, os Bombeiros de Santa Marinha do Zêzere e as duas IPSS aderentes (OBER e Cecajuvi), o concelho tem, para já, uma capacidade instalada para 100 pessoas, tendo já recebido 13 ucranianos, na totalidade mulheres e crianças.
Para além de Iryna e Oleksandra, já estavam em Baião mais três senhoras, de 66, 60 e 43 anos, tendo chegado, no último dia de março, mais três mulheres, uma delas de 30 anos com os dois filhos, de seis e dois anos.
Estas três mulheres e duas crianças foram alojadas nos Bombeiros de Santa Marinha do Zêzere, que, dentro do que podiam, disponibilizaram uma camarata de cinco camas, o bar, que tentaram transformar numa cozinha e ainda mais alguns espaços no quartel.
“Isto é uma casa que tem por princípio básico a solidariedade. Quando começámos a ver a vaga de refugiados e a ver toda a gente a disponibilizar-se para ajudar, pensámos no que poderíamos também fazer. Então, decidimos reorganizar as nossas camaratas e abdicarmos de algumas salas e do bar, que não é uma cozinha, mas tem fogão, frigorífico e agora comprámos um forno”, revela Leandro Amorim, vice-presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Santa Marinha do Zêzere
Quiseram preparar o espaço para caso quisessem cozinhar, o poderem fazer. No entanto, para já, a Câmara assumiu o compromisso de pagar o almoço e o jantar, que a corporação vai buscar para elas comerem no quartel.
E o esforço dos bombeiros para que o acolhimento seja o melhor possível, na corporação já se assumiu “evitar ao máximo utilizar a sirene, para não perturbar as senhoras”, afirma Cátia Rocha, a única operacional feminina na corporação e que faz a ligação com as refugiadas.
Quando o SOLIDARIEDADE esteve em Baião, estas refugiadas estavam no quartel apenas há cinco dias. Mostravam-se ainda bastante reservadas e retraídas, pelo que nem as vimos.
Para além desta «barreira social», digamos, uma outra dificulta também uma mais rápida integração: a barreira linguística.
No grupo ninguém fala inglês, o que leva Leandro Amorim a deduzir que serão pessoas do “meio rural” e justifica: “Hoje em dia, principalmente, os jovens falam ou arranham o inglês, mas elas não percebem nada a não ser ucraniano. E, normalmente, as pessoas de Leste têm muita instrução”.
A solução encontrada, para além da linguagem universal que é o gesto, foi a criação de um grupo no Whatsapp com tradutor e assim estabelecer a comunicação. Benditas tecnologias!
Para evitar problemas de comunicação, adaptação e integração destas pessoas nas nossas comunidades, para além da integração dos mais novos nas escolas e infantários, as entidades estão a promover o ensino do Português para os adultos.
“Fruto da boa-vontade das pessoas, já temos uma senhora que se disponibilizou para ensinar Português aos adultos. Em princípio já há um espaço no nosso Campus Social para decorrerem as aulas e estamos, agora, a procurar os melhores horários”, revela Filipe Fonseca, que lamenta o facto de não haver ucranianos no concelho que pudessem ajudar na tradução.
“Recorremos a algum voluntariado e conseguimos uma tradutora na sequência de um contacto com o município de Gondomar. Mais uma situação em que uma jovem se voluntariou para colaborar e sentimos que a presença dela é muito importante”, acrescenta o autarca, que recorda “a vantagem de algumas das primeiras oito pessoas dominarem o inglês, o que facilitou a integração”.
Sem prazo para o fim da guerra, nem para o tempo que estas pessoas por cá ficarão, a operação de acolhimento prevê igualmente uma vertente de empregabilidade, no sentido destas pessoas se autonomizarem enquanto estiverem em Portugal.
“Em termos de emprego, contactámos o Centro de Emprego e também temos o nosso Gabinete de Inserção e Emprego (GIE), que desde início está a acompanhar esta situação. Criámos uma bolsa de emprego, simplesmente com as ofertas já comunicadas ao nosso GIE, contactámos as empresas que manifestaram essas disponibilidades, tendo algumas respondido afirmativamente à possibilidade de receberem refugiadas. E estamos a falar de vagas que já existiam, não foram criadas para responder a esta situação”, sublinha Filipe Fonseca, que acrescenta: “Estas ofertas de emprego, tendo em conta o público alvo, ou seja, mulheres, são em grande parte direcionadas para a restauração, hotelaria e alguns trabalhos doméstico. São cerca de 50% das ofertas, mas também há vagas nas áreas da construção civil, das engenharias e da enologia”.
Por outro lado, está também em marcha o processo de integração das crianças nas escolas, mas ainda está condicionado ao ok da Saúde.
“As crianças já fizeram uma primeira abordagem aos espaços, mas ainda não estão a frequentar o ensino. Há ainda situações que têm de ser acauteladas antes da integração na comunidade escolar, pelo que aguardamos a luz verde da Saúde para que as crianças possam começar a frequentar o ensino”, explica o autarca.
A este enorme movimento de solidariedade, a comunidade baionense está a dar sinais de que está disposta a ajudar.
“A própria Associação Empresarial de Baião (AEB) e o Centro de Saúde local têm feito um esforço enorme, desde a primeira hora, na recolha de alimentos e roupas, entre outras coisas. Desde o início essas recolhas são reunidas nos Bombeiros Voluntários de Baião, que ali são devidamente acondicionadas para depois serem enviadas para a Ucrânia”, conta Filipe Fonseca, que reforça o elogio à comunidade de Baião que não hesitou em ajudar estas pessoas que fogem da guerra.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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