Na continuação dos assuntos abordados no meu texto anterior, reitero que vale a pena, aos dirigentes das IPSS, independentemente das suas convicções ideológicas ou religiosas, conhecerem e refletirem, pelo menos, o capítulo V da Carta Encíclica do Papa Francisco sobre a Amizade Social, mais conhecida por “Fratelli Tutti”. Sem pretender substituir-me à leitura integral do referido capítulo, permitam-me que realce umas quantas ideias abordadas pelo Papa. Depois de deixar expresso o seu desejo pelo crescimento da fraternidade, pela necessidade de uma organização mundial mais eficiente, sobretudo na solução dos problemas dos seres humanos mais fragilizados, ele escreveu: A consistência de tudo isto poderá ser bem pouca, se perdermos a capacidade de reconhecer a necessidade duma mudança nos corações humanos, nos hábitos e estilos de vida. (…) Por isso, a minha crítica ao paradigma tecnocrático não significa que só procurando controlar os seus excessos é que poderemos estar seguros, já que o perigo maior não está nas coisas, nas realidades materiais, nas organizações, mas no modo como as pessoas se servem delas. A questão é a fragilidade humana, a tendência humana constante para o egoísmo, que faz parte daquilo que a tradição cristã chama «concupiscência»: a inclinação do ser humano a fechar-se na imanência do próprio eu, do seu grupo, dos seus interesses mesquinhos. Esta concupiscência não é um defeito do nosso tempo; existe desde que o homem é homem, limitando-se simplesmente a transformar-se, adquirir modalidades diferentes no decorrer dos séculos, utilizando os instrumentos que o momento histórico coloca à sua disposição.[1]
Deste trecho retiro três desafios que se colocam a quem quer dirigir uma IPSS ou outro tipo de Organização que tenha finalidades afins. O primeiro, e o mais difícil, é a mudança de mentalidades, sempre necessária, para que se acolham as várias transformações que se vão operando, nem todas favoráveis ao bem comum, e novos estilos de relacionamento humano, institucional e de gestão. A não resistência às boas transformações, que obriguem a novas estratégias de atuação, é um dever dos líderes das IPSS, das suas colaboradoras e dos seus colaboradores e, até mesmo, dos beneficiários e seus familiares dos serviços prestados. Essa não resistência tem de ter em conta uma autonomia reflexiva, apoiada no discernimento das mutações económicas, culturais, sociais… ou seja, de uma sabedoria verdadeira e não apenas de inteligência. Resistir à mudança é correr o risco de ficar para trás. O segundo desafio é vencer todas as formas de individualismo que se instalem dentro das instituições, obstaculizadoras da cooperação entre instituições, e que se domine o pessimismo sobre a possibilidade da eliminação das gritantes desigualdades sociais e do igual acesso de oportunidades. O pensamento de Francisco, atrás transcrito, ajuda à motivação para o combate contra o individualismo. Reafirmo que as IPSS têm uma missão ímpar neste combate, sob pena de as palavras “solidariedade” e “social” serem um embuste. As motivações dos que animam estas instituições não podem ser outras que não sejam o interesse pelo bem de cada uma e de todas as pessoas sem qualquer forma de discriminação e sem interesses pessoais, sejam eles de ordem material ou de protagonismo social. Se o interesse pelo próximo e pelo bem comum for o fundamento único dos promotores sociais e seus/suas colaboradores/as, as tarefas serão realizadas com entusiasmo; a cooperação interna e com outras entidades tornar-se-ão cativantes, assim como o tão badalado, mas, em muitas situações, mal-executado que é o trabalho em rede. Urge, por isso, reafirmo-o mais uma vez, a revisão dos indispensáveis instrumentos que constituem a Rede Social. Só o trabalho em rede é eficaz e mais eficiente. Nenhuma forma de parceria é má, pois «o perigo maior não está nas coisas, nas realidades materiais, nas organizações, mas no modo como as pessoas se servem delas». No trabalho em rede, há um princípio inquestionável que é a equidade. Não existe justificação que sustente qualquer forma de diferenciação.
Os dirigentes das IPSS são atores políticos, no sentido intrínseco da palavra, por isso, espero que estas minhas modestas reflexões possam ser úteis. Em Portugal, sem uma participação responsável não se pode esperar que a política seja melhor. Cito o Papa que me parece dirigir-se também aos atores sociais para que não se restrinjam a ser apenas prestadores de serviços: A tarefa educativa, o desenvolvimento de hábitos solidários, a capacidade de pensar a vida humana de forma mais integral, a profundidade espiritual são realidades necessárias para dar qualidade às relações humanas, de tal modo que seja a própria sociedade a reagir face às próprias injustiças, às aberrações, aos abusos dos poderes económicos, tecnológicos, políticos e mediáticos. Há visões liberais que ignoram este fator da fragilidade humana e imaginam um mundo que corresponda a uma determinada ordem que poderia, por si só, assegurar o futuro e a solução de todos os problemas. [2] Tendo em conta que corretas formas de proceder, impulsionadas por valores universais, e orientadas pelo sentido humanista das tarefas praticadas, geram maiores motivações e, desta forma, mais rentabilidade. Sou totalmente solidário com a preocupação dos dirigentes das IPSS quanto à sustentabilidade das mesmas que urge resolver. Porém, também tenho a convicção que a desejada sustentabilidade não está apenas assegurada pelo crescimento de contribuições financeiras. Por isso, penso que é importante manter dinamismos de consciencialização das pessoas que integram as nossas IPSS, para que, além dos serviços que prestam para o bem-estar de quem as procuram, se ocupem da dimensão espiritual, enquanto força imanente que nos impele a reconhecer os valores que dão sentido à vida individual e coletiva e são os pilares mais seguros onde se faz a construção de uma política melhor. Certo é que sem as IPSS e outras instituições do domínio da justiça social e de solidariedade nunca haverá a mudança civilizacional que urge e de forma segura.
Errata: Peço imensa desculpa por um lapso que tive nas citações referidas no último texto. Assim: a citação 1.ª é [1]cfr. FRANCISCO, Carta Encíclica Fratelli Tutti (3 de outubro de 2020), Paulinas Editora- Secretariado Geral do Episcopado, Prior Velho 2020, 159-160 e a 2.ª [1] Ibidem, 165.
[1] cfr. FRANCISCO, Carta Encíclica Fratelli Tutti (3 de outubro de 2020), Paulinas Editora- Secretariado Geral do Episcopado, Prior Velho 2020,166.
[2] [2] Ibidem, 167.
Não há inqueritos válidos.