JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Dois problemas bicudos do atual surto inflacionário

No verso de um célebre soneto, Camões enumerava as causas de uma vida agitada e nem sempre feliz: “erros meus, má fortuna, amor ardente”.
Ocorreu-me este verso quando refletia sobre a génese do atual ciclo inflacionário. Só não encontro lugar para o “amor ardente” porque, em contrapartida, sobra espaço para a “má fortuna” e para os “erros meus”.
É evidente que neste ciclo inflacionário há uma boa dose de má fortuna. Ninguém podia ter antecipado a pandemia ou a guerra na Ucrânia.
Contudo, tenho para mim, que são sobretudo os “erros meus” que explicam o estado de coisas em que vamos vivendo.
Creio que cometemos dois erros básicos: excessos nas políticas públicas de resposta à pandemia e complacência em relação aos primeiros rebentos do surto inflacionário. Os dois erros resultam de um mesmo fator – não temos (ao contrário do que pensávamos) uma boa teoria sobre a inflação.
Também não ajudou o facto de políticos, administradores das empresas ou os dirigentes sindicais dos nossos dias não terem, em regra, conhecimento direto dos malefícios da inflação.
O nosso atual primeiro ministro tem 61 anos. Tinha 12 na altura do primeiro choque petrolífero e andaria pelo começo da carreira como jurista quando o ciclo começou a esmorecer. A maioria dos dirigentes dos nossos dias terá menos de 60 anos e não tem, portanto, experiência direta dos dramas que um ciclo inflacionário sempre causa.
A verdade é que a geração dos decisores atuais, os que entraram na idade adulta em meados dos anos oitenta, foi poupada à experiência inflacionista.
Os economistas chamam a esse período que, grosseiramente vai de meados dos anos oitenta até à crise de 2008, a “grande moderação”.
Trata-se de um período excecional, invulgarmente calmo segundo padrões históricos, em que as tensões inflacionistas estiveram controladas e as crises, quando ocorreram, foram, de uma forma geral, curtas e pouco profundas.
A relativa tranquilidade desse período criou a ilusão de que sabíamos as causas e a cura para a inflação, de que tínhamos uma boa teoria para ler o mundo.
Basicamente tratava-se de acreditar que existe um balanço (um trade-off como dizem os economistas) entre desemprego e inflação. Se queremos desemprego baixo temos de tolerar um pouco de inflação, se queremos inflação curta temos de suportar um pouco de desemprego.
O modelo operacional de governo do balanço desemprego/inflação baseou-se em dois pilares, a saber, a prevalência da política monetária e a independência dos bancos centrais.
Prevalência da política monetária e a independência dos bancos centrais podem parecer coisas muito complicadas, mas são, na essência, conceitos muito simples e, na base estão, como sempre, opções políticas.
Convém lembrar que a parição do modelo ocorreu nos anos oitenta e no quadro do ascenso do que vulgarmente se chama (erradamente a meu ver) neoliberalismo.
A ideia base é que os governos só atrapalham, a decisão política nas democracias é lenta e os processos parlamentares são intermináveis.
Os ciclos orçamentais são, por regra anuais, mas a gestão da economia pode obrigar a intervenções tempestivas. Pior ainda, mesmo que as decisões orçamentais fossem rápidas e corretas têm um problema de inércia – por mais adequadas e tempestivas que fossem as medidas, quando finalmente vierem a fazer efeito, a crise já passou.
O que é tempestivo e produz efeitos quase instantaneamente é a política monetária. Subir ou descer taxas de juro, controlar a quantidade de dinheiro que circula ou adequar a criação de crédito disponível, isso sim é tiro e queda.
Restava um problema. Entregar a gestão monetária aos políticos era desperdiçar o poder do instrumento, mais uma vez pela lentidão e pelo contraditório natural do processo de decisão democrática.
A solução que se encontrou foi a independência dos bancos centrais.
Basicamente trata-se de delegar a decisão da política monetária em profissionais, escolhidos pelo poder democrático, é certo, mas que, uma vez nomeados, gozam de total independência nas decisões de política monetária desde que, obviamente, atuem no quadro do mandato que lhes foi outorgado.
Os banqueiros centrais são profissionais cujos mandatos não dependem das próximas eleições, não têm necessidade de ser populares, podem atuar em tempo, dar más notícias, tomar medidas desagradáveis quando necessário, ou seja, tudo o que os políticos não podem fazer.
A verdade é que modelo funcionou bem durante trinta anos, ou seja, praticamente toda a idade adulta da atual geração de decisores. Funcionou tão bem que nos habituámos a dá-lo como um adquirido.
E, no entanto, não é assim!
Há muito que sabemos que, por mais lógica que nos pareça a curva de Phillips (é quase intuitiva), a verdade é que não há evidência empírica que a suporte.
O gráfico seguinte (gentileza do FT) mostra em cada ponto azul a leitura de um par de desemprego (eixo horizontal) e inflação (eixo vertical) desde os anos 70.
O que vemos é uma nuvem informe de dados. Se a curva de Phillips funcionasse deveríamos ver uma mancha descendente da esquerda para a direita (inflação alta – desemprego baixo e desemprego alto – inflação baixa)
Claro que podemos sempre dizer que o modelo continua válido e que são outros fatores que estão a “abafar” a sua manifestação.
Talvez! Mas isso lembra-me aquele aforismo de torturar os números até que eles confessem o que nós queremos.
Acredito que é altura de reconhecer que entre os anos oitenta e a crise financeira de 2008 não vivemos a “grande moderação”, mas, porventura, vivemos a “grande ilusão”.
O período de relativa acalmia da “grande moderação” pode, afinal, não se dever nem ao poder da política monetária, nem ao modelo de decisão independente dos banqueiros centrais.
Com jeito, trinta anos de relativa calma explicam-se apenas por um pouco de sorte e por fatores deflacionários que entraram em força na economia global por essa altura, nomeadamente, o ascenso económico da China e outros emergentes capazes de produzir tudo e um par de botas a preços impensáveis pelos padrões ocidentais.
Como economista não me custa reconhecer que aquilo em que acreditámos piamente durante uma geração possa não ter passado de uma ilusão.
Mais, se a ciência tem um grande atrativo, é justamente esse – o carácter transiente de todo o conhecimento. Uma teoria é boa enquanto nos ajuda a perceber o mundo e está de acordo com a evidência empírica disponível. Quando isso não acontece temos de partir em busca de uma teoria melhor.
Jerome Powell, o atual dirigente máximo da Reserva Federal Americana, o mais importante banco central do mundo, disse recentemente em Sintra, no encontro anual de banqueiros centrais promovido pelo BCE, que nos falta uma boa teoria da inflação.
Sábias palavras! Se passámos em pouco tempo do medo da deflação (preços que não crescem) para um surto inflacionista forte (preços que crescem demais) e quase não demos por isso, então é porque não sabemos muito da poda.
Porventura, estamos na atual situação porque pensávamos que sabíamos, não sabíamos que pensávamos!
Talvez a complacência dos dirigentes em relação à inflação se deva a falta de experiência vivida e um modelo teórico errado talvez explique os excessos nas políticas públicas dos últimos anos.
Contudo, o facto de não termos um guia teórico seguro, não absolve os banqueiros centrais dos erros que cometeram nos últimos anos nem pode justificar a inação perante o monstro inflacionário.
O que os banqueiros centrais fizeram mal no passado e o que devem fazer agora são dois temas aliciantes a que talvez voltemos no futuro.

 

Data de introdução: 2022-08-11



















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