HENRIQUE RODRIGUES

O questionário de Proust

1 - Todos os anos, pelo Verão, e dentro dos rituais da silly season, vários jornais apresentam aos seus leitores, em páginas destinadas a entretenimentos próprios do vagar do tempo de férias, misturadas com as coscuvilhices e as palavras cruzadas, com a gastronomia, com as notas dos enólogos ou com as escapadas de fim-de-semana, as respostas dadas por diversas personalidades a um inquérito, designado “Questionário de Proust.”

Trata-se de um conjunto de perguntas, inicialmente formuladas pelo escritor francês Marcel Proust, cujas respostas se destinam a traçar o perfil de cada um dos entrevistados e a informar o público leitor dessas respostas e do retrato que delas se extrai.

Normalmente é o mês de Agosto o escolhido para a publicação, em cada dia do mês, das respostas dadas por cada um dos respondentes, que percorrem as mais diversas identidades sociais, culturais, políticas ou profissionais.

O registo é confessional: quem responde informa-nos de quais são as suas – e as dos outros - maiores qualidades e os maiores defeitos, quem mais admira ou o que mais detesta, de que nomes mais gosta ou que escritores prefere, ou que livros anda a ler (andam sempre a ler algum …).

De sorte que este registo nos permite aceder à intimidade das maiores ou menores celebridades, saciando a nossa curiosidade perante essa informação inútil, como se espreitássemos pelo buraco da fechadura, mas sem a censura social que este outro procedimento implica.

Claro que esta confissão perante o Questionário de Proust nada tem que ver com a confissão/sacramento, em que fomos ensinados a não mentir nas respostas, porque de nada valia: para além do sacerdote, que ouvia a nossa confissão verbal, havia um Outro, que tudo sabia, mesmo antes de respondermos, e perante Quem de nada servia adornar o currículo.

Ao Questionário de Proust responde-se como se quiser, de sorte que o retrato de cada confidente, mais do que a reprodução fiel do retratado, é o retrato de si-próprio/o outro, a máscara com que desejava ser visto ou reconhecido.

Normalmente, o retrato assim exposto, tratado em photoshop, é melhor do que o retratado é, na realidade.

Não há escrutínio sobre as respostas, valendo a indulgência própria da ligeireza estival para que alguns traços mais desfasados da realidade passem sem censura.

Não é Carnaval … mas ninguém leva a mal …

 

2 – O Questionário de António Costa, hoje viático para o acesso a cargos no Governo, tem muitas semelhanças com o Questionário de Proust.

Como no de Proust, trata-se de confissões; isto é, trata-se de um conjunto de 36 perguntas sobre a vida passada, presente e futura dos “candidatos” a membros do Governo ou dos seus familiares.

É um ritual de “passagem”, porventura substituindo outros rituais por onde noutras ocasiões tem sido feito o recrutamento.

E, do mesmo modo que o Questionário de Proust, também abre a intimidade dos candidatos a governar-nos a quem tiver, legítima ou ilegitimamente, acesso ao seu teor.

Igualmente se manifesta como a versão que cada qual apresenta de si próprio, com os adornos, as modelações e os remendos com que cada um dos respondentes afeiçoa o seu currículo aos objectivos da função.

Às vezes, uma subtil modificação semântica tem consequências profundas … Basta ver o recente acórdão do Tribunal Constitucional, sobre a eutanásia, a propósito da interpretação da conjunção coordenada copulativa “e” …

Mas tem também diferenças …

Enquanto o Questionário de Proust possui uma natureza superficial e ligeira, não nos afectando senão num vago franzir o sobrolho numa esplanada de Verão, perante alguma afirmação mais exagerada, o Questionário de António Costa destina-se a impor o selo de validade a quem vai implicar com a nossa vida e com a nossa fazenda.

A quem nos vai “pastorear”, como diria Vasco Pulido Valente.

Outra diferença reside nos efeitos; enquanto o Questionário de Proust releva da brandura e da calmaria dos dias das férias de Verão, a natureza das perguntas do Questionário de António Costa, e principalmente das respostas, corresponde mais a uma exposição no pelourinho.

Com efeito, as respostas dizem-nos que, mais do que o Primeiro Ministro ou o Ministro quer convidar, também o próprio candidato quer aceitar.

Explicando-me melhor: os convites para o Governo – qualquer Governo – obedecem à seguinte ficção: o Primeiro Ministro convida para Ministros, e estes convidam para Secretários de Estado, aquelas personalidades que, pela sua competência e capacidade, melhor desempenharão, a seu ver, e em benefício da Pátria, os cargos governativos respectivos; e os convidados aceitam ser providos, sacrificando-se, em cargos aliás mal pagos, no interesse público e por amor da mesma Pátria.

Introduzir uma prestação de provas, que é uma espécie de humilhação, em que só se pergunta sobre factos desagradáveis ou incómodos, implica a vontade de o candidato ocupar o cargo previsto; e tal inferência é incompatível com a ficção romântica do desprendimento pessoal e do serviço público.

É como instituir uma espécie de CRESAP, mas para o acesso a um órgão de soberania, como é o Governo.

 

3 - Já por cá ando há mais de 70 anos e considero-me bem informado sobre o País e o mundo que me rodeia.

Costumo dizer que a providência me permitiu começar quase cada dia da minha vida adulta a ler o jornal, e a tomar o café, numa esplanada.

O Expresso fez 50 anos a ainda me lembro de comprar o primeiro número, em 1972.

Ainda possuo esse exemplar, em arquivo.

Creio, ao que me lembre, nunca ter deixado passar uma semana sem o ler.

(Basta de confidências pessoais; ou os meus leitores dirão que provo do meu próprio veneno, que estou a responder a algum questionário íntimo …)

Estive a passar em revista a lista de “casos” e “casinhos” que tem trazido um imprevisto “frisson” à maioria absoluta.

Tirando Marta Temido e Pedro Nuno Santos, não conhecia, nem de nome, e ainda menos de valimento, nenhum dos membros do Governo que foram sendo afastados ou se foram afastando nos tempos mais recentes.

Não tenho a ideia de os Secretários de Estado serem meros ajudantes dos ministros, como já foram considerados.

Só na área do Trabalho e Segurança Social, de que as Instituições Particulares de Solidariedade Social se encontram mais próximas, ninguém em seu juízo consideraria António Bagão Félix, ou Leonor Beleza, ou Paulo Pedroso, em seu tempo Secretários de Estado, como ajudantes.

Todos tinham e têm densidade própria, todos levaram a cabo mudanças importantes no Sector, a todos sempre foi reconhecida unanimemente a preparação para funções de Governo.

Todos tinham “vida”, antes de irem para o Governo.

(Ou Vasco Graça Moura, Secretário de Estado da Segurança Social, em 1975.)

Tenho para mim que o melhor escrutínio é este: não um qualquer inquérito sobre torpezas e trapalhadas, passadas ou presentes, próprias ou alheias; mas a escolha dos melhores.

Dos melhores, segundo o juízo consensual da comunidade.

Quem, pela sua vida pública, adquiriu justo prestígio não teme o juízo do povo.

Mas esses não aceitam ser ajudantes … Nem respondem a devassas …

 

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2023-02-08



















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