HENRIQUE RODRIGUES

Voando sobre um ninho de cucos

1 – Sou, como somos todos, accionista da TAP.
Com uma admirável regularidade, parte dos impostos que pago são canalizados para manter à tona o que tenho visto designar por uma “companhia de bandeira”.
(Esta bandeira é a nossa, a bandeira de Portugal – coisa estranha para quem cresceu, como eu, a ouvir proclamar que o grande capital não tem pátria nem conhece fronteiras; nem tem bandeiras a desfraldar.
Como o proletariado, segundo a lição de Karl Marx, no Manifesto do Partido Comunista: “Os operários não têm pátria.”
Ainda dentro do parêntesis: escrevi “manter à tona”, sem malícia. Embora se trate também de transportes, e da bandeira nacional, não estava a pensar no navio Mondego, que há quem afirme não se manter à tona da água – e quem afirme o contrário.)
Afigura-se-me que o meu representante na assembleia geral da TAP – o accionista, como chamam todos ao dono da companhia, que é o Estado - não tem defendido com a desejável prudência os meus interesses de accionista por via fiscal.
Na verdade, em vez de a informação aos verdadeiros accionistas sobre a saúde da Companhia ser divulgada nos seus órgãos próprios, é necessário levar à sede parlamentar e a uma Comissão Parlamentar de Inquérito a obrigação de o Conselho de Administração nos informar do aviamento da empresa.
E o que temos ouvido e lido não é de molde a deixar-nos tranquilos – e ainda não chegou a metade da missa.
(Entretanto, fomos avisados de que o nosso representante, o Estado, se prepara para vender de novo a TAP, privatizando-a, numa réplica de Pedro Passos Coelho, no que se afigura um regresso à página anterior, que fora virada em 2015, pela Geringonça.
Verdadeiramente, a TAP bem se afirma como companhia de aviação: voa da esquerda para a direita, da direita para e esquerda, novamente da esquerda para a direita – sem estados de alma, sem um suspiro de saudade.)
Depende, como se sabe, do lado donde sopra o vento …

2 – Não vale a pena revisitar todas as peripécias que a actividade da Comissão Parlamentar de Inquérito, voluntária ou involuntariamente, tem provocado.
Mas a sua aptidão para causar estragos merece algumas notas e comentários.
Tem sido elogiada, ou repudiada, consoante a posição de quem comenta, os bons resultados que têm bafejado a economia portuguesa.
Até o Presidente da República, não obstante o diagnóstico severo que nos comunicou acerca da maioria absoluta que suporta o Governo do PS, reconhece tais resultados – embora comentando que tais virtudes ainda não chegaram ao bolso dos portugueses.
E, na verdade, os jornais deste fim de semana referem que, já em 2023, Portugal ultrapassará, pela positiva, a Espanha e a França no peso da dívida pública em percentagem do PIB, o mesmo sucedendo brevemente em relação à Bélgica; prevendo igualmente que em 2026 o peso da dívida será finalmente inferior a 100% do PIB.
Tais resultados acompanham o ritmo que tem sido traçado às finanças públicas desde 2011, sob a batuta da troika, que Mário Centeno manteve, a partir de 2015 – embora dissesse o contrário.
Depois do tempo dos cortes, com Pedro Passos Coelho, foi o tempo das cativações, com a Geringonça, da poupança forçada na despesa com os serviços públicos, em nome das “contas certas” – eufemisticamente invocadas sob a designação de “virar a página da austeridade”.
Uma das questões que mais perturbam esta política das contas certas é o dos seus efeitos na qualidade e eficácia dos serviços públicos.
Com efeito, muita gente avisada pergunta-se se, em vez da aceleração do ritmo da redução da dívida, não seria preferível um ritmo mais modesto, alocando recursos aos domínios onde as falhas são mais graves: o SNS, a Justiça, a Educação, a Habitação.
Foi a preterição do investimento nessas áreas que verdadeiramente levou ao fim da Geringonça.
(Ainda hoje o “Público” dá nota da criação de um novo movimento cívico, que não é suspeito de hostilidade para com o Governo, em defesa do SNS – que considera urgente curar.)
Mas foi também a confluência dessa opção do Governo do PS com a cumplicidade do Presidente da República que permitiu os bons resultados nas “contas certas” – e, de caminho, permitiu ao PS apoiar a candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa ao 2º mandato presidencial.
(O tempo político corre velozmente – e já quase ninguém se lembra que o PS mandou votar Marcelo há pouco mais de 2 anos.)
Essa cumplicidade acabou – e foi um dividendo da TAP.
Só falta saber quem lucra com esse dividendo.

3 - Os políticos portugueses são, no geral, mal pagos.
A exposição pública e a devassa de toda a sua vida, e da família, dos deputados, dos membros do Governo, passada a pente fino, não é compensada pelos salários que são pagos.
Mas a passagem pelas cadeiras do poder serve muitas vezes – demasiadas vezes – de porta giratória para cargos mais bem remunerados.
Para o caso de a gente se esquecer, as Comissões Parlamentares de Inquérito têm tido a virtualidade de nos recordar que, apesar de o salário médio em Portugal ser próximo do salário mínimo, essa escassez não é para todos.
Como, no tempo da troika, se qualificavam de obscenas as reformas de muitos banqueiros, com poucos anos de descontos, o mesmo se pode dizer da displicência com que, num País pobre, se pagam milhões a gestores públicos de companhias falidas – como viemos a saber no caso da TAP.
Até o Governo, que os nomeou, ficou surpreendido.
Ou não, como a Comissão Parlamentar de Inquérito irá apurar – ou não!

4 – No filme de Milos Forman, cujo título roubei para esta crónica, um personagem, o Chefe Bromden, atira um carrinho de hidroterapia pela janela, para conseguir fugir do hospital psiquiátrico onde se encontrava retido.
Se, em vez de um carrinho, fosse uma bicicleta contra o vidro, lembrava-me outra história …

Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)  

 

Data de introdução: 2023-05-10



















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