PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

A visita e a viagem

Nas próximas décadas as nossas sociedades serão mais multigeracionais do que nunca. Uma proporção cada vez maior da população viverá mais de cem anos. As próximas gerações viverão em sociedades em que coexistirão quatro, mesmo cinco, gerações.

Se não mudarmos radicalmente os atuais dinamismos demográficos, a geração mais nova terá uma dimensão escassa face às mais velhas e, porque não atingimos ainda o ponto de conseguirmos envelhecer saudáveis, uma parte das gerações mais idosas, terá doenças crónicas incapacitantes e limitações físicas significativas, na mobilidade, na audição, na visão. Uma pequena parte, embora crescente, sofrerá de demências.

Tudo isto é conhecido, continua a ser investigado e constitui desafios ao modo como nos organizamos enquanto sociedade.

Se é abundante a investigação sobre o envelhecimento e a nossa saúde física, é surpreendentemente escasso o conhecimento e a investigação sobre a componente da nossa saúde mental que deriva do nosso bem-estar subjetivo, nomeadamente na velhice, embora esteja já estabelecido que o sofrimento afeta a nossa saúde global.

O isolamento social e a solidão é uma das dimensões identificadas de sofrimento na velhice, embora não seja exclusiva dessa idade da vida.

O Papa Francisco, dias antes das Jornadas Mundiais da Juventude, pediu aos jovens para, antes de partirem em viagem, visitarem os avós ou um idoso que estivesse sozinho. Esta mensagem do Santo Padre replica o sentido de outras suas intervenções anteriores, em que reflete sobre a intergeracionalidade.

Em diversas ocasiões o Papa tem falado sobre a aliança das idades da vida[1] ligando o futuro dos jovens aos sonhos dos idosos. Na visão do Papa a transmissão dos sonhos e das experiências de vida dos idosos ajuda os jovens a ter projeto e confiança nas suas vidas, assumindo e prosseguindo-os.

Mas sabemos que escasseiam os canais para a interação geracional que o Papa exortou os jovens católicos a praticar. A evidência aponta para o crescimento da solidão e isolamento social dos velhos. A morte de um dos companheiros de vida, as migrações a longa distância, a reorganização das dinâmicas familiares e muitos outros fatores convergem para que as visitas que o Papa pede rareiem.

Entre os que diagnosticam este problema há quem tenha visões que assentam em pressupostos errados para a sua ultrapassagem.

Encontra-se por vezes quem culpe a emancipação das mulheres, a igualdade de género e o combate à família patriarcal  por esta quebra. Como se a intergeracionalidade devesse ser assegurada pela existência de uma pessoa – quase sempre uma mulher – que abdicasse da sua realização individual para ser guardiã da harmonia coletiva familiar.

Há também quem pense esta questão como um tema exclusivamente das famílias, um problema da vida privada e que apenas dentro dela deve ser resolvido. Para estes há um dever familiar – que não se nega – de convívio, mas que ocupa todo o espaço da organização social para a intergeracionalidade.

Estas visões não nos conduzem ao futuro. Hoje, muitos velhos confessam, quando inquiridos não ter sonhos nem projetos de vida. E não creio que devamos culpar as suas filhas e netas, ou a sua família próxima por isso. Embora devamos ao máximo encorajar o diálogo intergeracional dentro das famílias, que tem um contributo preciosos.

Precisamos de imaginar novas formas de trazer os idosos à vida social. Num belo texto de há algumas décadas sobre o envelhecimento, António Teixeira Fernandes, recentemente falecido, falava da última morte em vida como sendo a morte como apagamento. O momento em que se negoceia a dependência e se perde contacto social, que culminaria um processo de afastamento da vida social que começa com a reforma, que retira aos velhos um lugar social e continua com a decrepitude, que isola da vida social[2].

Para contrariar essa tendência é necessário termos uma sociedade do cuidado. Aqui não falo dos cuidados no sentido dos serviços a pessoas com limitações, mas de cuidar como relação social.

A atenção ao outro, o cuidado, é essencial ao estabelecimento de uma relação social. É nesse âmbito que me tocou o apelo do Papa aos jovens que partiam de todo o mundo para Portugal e Lisboa para irem primeiro visitar os avós e os idosos. A visita é um ato de cuidado e expressa a vontade de convívio e a procura do encontro. Não é claro, de acordo com a investigação, que as visitas sejam eficazes no combate à solidão e ao isolamento social e há mesmo quem mostre evidências de que são mais eficazes para esse efeito os programas organizados, com atividades estruturadas e objetivos identificados. Mas o apelo do Papa à visita estende-se a todo o tipo de visita. É uma metáfora para o pedido de encontro entre gerações. Algo que não tem a ver com o cuidado dos corpos e das doenças físicas, mas com a manutenção daquilo a que os sociólogos gostam de chamar o laço social. É na reconstrução de laços sociais que os jovens de hoje podem ser fulcrais na resolução desta questão que não criaram mas herdaram de sociedades preparadas para um envelhecimento de curta duração face ao atual e, mais ainda, ao futuro.

A quem tem poder cabe pensar como pode ajudar as pessoas a encontrarem-se, como pode promover o sentimento de cuidado e o espírito da visita para além do despertar individual para elas.

José Saramago escreveu uma vez e a Fundação com o seu nome recordou-o durante as jornadas mundiais da juventude que “a felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles”. Visitar será, certamente, um outro.

 


[1] Acessível, por exemplo, em https://ihu.unisinos.br/categorias/616487-o-futuro-dos-jovens-sao-os-sonhos-dos-idosos-catequese-do-papa-francisco

[2] António Teixeira Fernandes analisava esta questão num quadro de transformação da vida familoiar que creio que não esgota a questão, mas a sua descrição do envelhecimento e dos desafios que levanta continua a ser, penso, um guia para entender e abordar o envelhecimento. Disponível em https://ojs.letras.up.pt/index.php/Sociologia/article/view/2390

 

Data de introdução: 2023-08-09



















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