O Banco Central Europeu (BCE) voltou a subir as taxas de juro na reunião de setembro. Desde o início deste ciclo de aperto monetário o BCE aumentou as taxas de juro de referência em 450 pontos base.
Do outro lado do Atlântico a Reserva Federal (FED) optou por manter as taxas de juro de referência (depois de um ciclo de aumentos de 525 pontos base em ano e meio), contudo, o presidente da FED, Jay Powell, teve o cuidado de esclarecer que a pausa não poderia ser entendida como sinal de fim de ciclo – novas subidas podem ser necessárias.
O que é talvez mais surpreendente por estes dias é a mudança na comunicação dos bancos centrais, vemos um notório tom de humildade a que não estávamos habituados, a não mais que um passo de uma confissão de impotência.
O presidente da FED recorreu a uma metáfora poderosa dizendo que a política monetária dos nossos dias é como navegar pelas estrelas numa noite com nuvens. Dito de outro modo – estamos perdidos e não podemos fazer mais que navegar à vista da costa.
Um outro elemento novo, que de alguma forma prenuncia um fim de ciclo, é o facto de as últimas decisões dos grandes bancos centrais terem sido tomadas por maiorias curtas. Longe vão os tempos das certezas e da unanimidade.
Este último incremento das taxas de juro na Europa foi muito discutido.
Em parte, porque ao contrário dos aumentos anteriores – que antecipadamente foram dados como quase certos – este parecia poder cair para qualquer lado.
No entanto, o aspeto porventura mais informativo do debate é que chegámos aquele ponto em que a linha que separa institucionalmente a política monetária das restantes decisões políticas fica necessariamente esbatida.
Não é por acaso que a decisão sobre as taxas de juro não cabe aos governos. Aprendemos com a última crise inflacionária que a política monetária deve ser decidida por um corpo de profissionais, independente dos governos. Ao contrário dos políticos profissionais, os banqueiros centrais não têm de ir a votos nas próximas eleições e podem decidir com base em critérios supostamente técnicos. Estão, por isso, em condições de tomar medidas impopulares, dar más notícias quando necessário, coisas que os políticos dificilmente podem fazer.
Naturalmente que a irrepreensível lógica deste modelo institucional se baseia num pressuposto, ou seja, que os banqueiros centrais dispõem de modelos teóricos de compreensão da realidade que lhes permitem em cada situação tomar as medidas certas, isto é, que podem governar com base em medidas técnicas em vez das sensibilidades sempre controversas da política geral.
Contudo, quando a realidade teima em não encaixar nos modelos e os próprios banqueiros centrais confessam que estão mais ou menos perdidos e a navegar à vista, faz ainda sentido o modelo institucional da política monetária?
Muitos políticos contestaram esta última subida das taxas de juro pelo BCE, entre eles o nosso ministro das finanças.
O argumento do Dr. Medina é imaculado. Uma vez que estamos numa situação de grande incerteza em que não é possível antecipar totalmente os efeitos das subidas das taxas de juro, o que podemos fazer é apenas avaliar os riscos das alternativas. Na ótica do Dr. Medina os riscos associados a subir as taxas de juro – abrandamento económico ou mesmo recessão – são maiores que os riscos de não as aumentar – inflação mais alta ou mais duradoura.
Sendo assim, se os banqueiros centrais não nos podem garantir uma leitura “técnica” indiscutível da situação, se não podem assegurar decisões com base em critérios objetivos e independentes de sensibilidades políticas, se estão a decidir com o mesmo grau de incerteza dos políticos profissionais, então coloca-se a pergunta: incerteza por incerteza não é melhor que decidam os governos democraticamente eleitos porque sobre esses temos, pelo menos, o escrutínio democrático e a possibilidade de os despedir nas próximas eleições?
O argumento pode ser tentador, mas é, do meu ponto de vista, improcedente.
Desde logo porque os exemplos que temos de países onde o governo manda no banco central são tudo menos recomendáveis.
A Turquia, sob o governo autocrático de Erdogan, colocou a política monetária ao serviço das ambições eleitoralistas do regime, fazendo descer as taxas de juro em tempos de inflação galopante. Os resultados foram os que se anteviam – a inflação disparou, a lira caiu a pique e agora, depois das eleições, uma nova equipa económica tenta colar os cacos de uma política desastrosa e, aos poucos, reganhar a confiança dos investidores internos e externos. Pelo caminho ficam custos colossais e sofrimento evitável do povo turco.
Depois porque, mesmo que em momentos de grande incerteza não seja possível fundamentar de forma inequívoca as decisões dos bancos centrais, é sempre preferível que essas decisões estejam ao abrigo da luta político partidária.
Não consigo imaginar como teria sido possível combater este ciclo inflacionista com decisões sobre taxas de juro tomadas por governos democráticos, sempre sujeitos à controvérsia político partidária, ao sabor dos altos e baixos da opinião pública, sempre com um olho nas medidas a tomar e outro nos números das sondagens eleitorais.
O atual modelo institucional da independência dos bancos centrais é uma aquisição dos modernos estados democráticos que não deve ser posta em causa.
Obviamente que, como qualquer instituição, o banco central está sujeito a escrutínio democrático e pode e deve ser criticado quando erra.
Neste espaço de crónica tenho sido muito crítico dos bancos centrais. Mas o meu ponto não é que sejam independentes demais, pelo contrário, a minha crítica é que, com o tempo, foram ficando muito parecidos com os políticos, muito preocupados com a sua popularidade em vez de se assumirem como instituições baseadas em regras e em mandatos que é necessário executar mesmo quando isso não gera muitos “likes” nas redes sociais.
Como compreender, de outra forma, que os bancos centrais tenham inicialmente classificado de “transitório” o ciclo inflacionista que agora nos atormenta? Mesmo quando já era evidente para os mais realistas que o risco de uma inflação autoalimentada estava diante dos olhos?
A solução não está em menos independência. A solução está em dirigentes fortes, idealmente sem passado político, com um curriculum académico e/ou profissional impoluto. Se quisermos, na FED, mais Ben Bernanke e menos Jay Powell e, no BCE, mais Mario Draghi e menos Christine Lagarde.
Não há inqueritos válidos.