Os economistas são frequentemente convocados para exercícios de humildade.
Talvez o momento mais difícil tenha sido a ressaca da crise financeira (a seguir económica e social) que varreu o mundo depois dos acontecimentos do final de 2008 nos Estados Unidos.
Num evento contemporâneo, em Londres, com a presença nas primeiras filas vários laureados com o Nobel da economia, a rainha de Inglaterra perguntava à distinta assistência: “mas ninguém viu chegar uma coisa deste tamanho?”
Por essa altura a profissão entregou-se a exercícios de autoflagelação públicos que, em bom rigor, não faziam qualquer sentido.
Conforme tenho defendido neste espaço de crónica, a previsão em economia é um exercício fútil. A realidade económica e social é demasiado complexa para caber mesmo no mais sofisticado dos modelos e por maior que seja a capacidade de computação disponível.
Esta incapacidade para antecipar o futuro com precisão não deveria ser uma fonte de depressão para os economistas. A incapacidade para prever não é equivalente a desvalorização do conhecimento.
Os geólogos aos poucos vão percebendo como a tectónica de placas, como os diferentes movimentos das placas que compõem a crusta terrestre provocam os terramotos. Não obstante, ainda é completamente impossível prever quando e como um terramoto se manifesta.
Devemos desprezar o conhecimento geológico por esta incapacidade de previsão? Creio que não!
Os médicos conhecem muito bem a dinâmica que pode levar a um acidente cardiovascular. Infelizmente também não conseguem antecipar quando tal ou tal acidente vai acontecer. Não deixámos de frequentar os médicos, por isso.
Estes pensamentos vêm a propósito de uma situação recente em que a generalidade dos economistas, este vosso criado incluído, mais uma vez falharam nas previsões. Ao contrário de 2008 em que ninguém viu chegar uma crise de proporções bíblicas, no final de 2022, com a perspetiva de um aperto monetário e subidas significativas nas taxas de juro, todos antecipavam uma recessão em 2023. A recessão poderia ser mais ou menos profunda, mais ou menos duradoura, mas uma recessão em todo o caso.
A verdade é que vamos no início de 2024 e de recessão, nem sinal!
A subida das taxas de juro opera inicialmente sobre sectores mais sensíveis ao custo do crédito. Um desses setores, seguramente o mais importante para o efeito, é o imobiliário residencial, ou seja, as casas de habitação.
Quando as taxas de juro sobem as hipotecas ficam mais caras e a procura para compra de casa diminui. Com menos procura o preço das casas tende a cair. Se a queda nos preços for substancial pode despoletar um outro fator - pode acontecer que, em alguns casos, o valor da casa fique inferior à dívida da hipoteca o que desestimula a continuação do pagamento das prestações.
Se por este mecanismo muitas casas ficarem nas mãos dos bancos credores, pode aumentar ainda mais a pressão vendedora quando a procura é escassa e fazer deprimir de novo os preços.
Foi isto que aconteceu nos Estados Unidos na génese da crise financeira de 2008. Os preços das casas começaram a cair ao longo de 2007, muitas famílias ficaram em “falência técnica”, ou seja, com casas que valiam menos que a dívida, e muitos dos produtos financeiros que tinham sido criados sobres as dividas hipotecárias, tornaram-se duvidosos ou mesmo tóxicos.
Como os produtos financeiros criados sobre o crédito hipotecário americano, em especial o de pior qualidade, conhecido por “subprime”, estavam espalhados pelo mundo inteiro, a crise ficou global.
Curiosamente, ao longo de 2023 não assistimos a nada que se parecesse com a crise que vem nos manuais quando as taxas de juro sobem muito e depressa.
Os preços das casas corrigiram aqui e ali mas, de um modo geral de forma moderada. Nos países de capitalismo avançado apenas na Suécia se verificou uma correção em baixa no preço das casas que chegou a assustar.
Tomando como indicador o valor das avaliações bancárias, em Portugal os preços das casas continuaram a subir em 2023 embora a ritmos na casa dos 4%/5%, inferiores aos do passado recente.
Do lado do crédito também não se verificou qualquer stress preocupante com o balanço dos bancos, mesmo em países, como Portugal, onde a esmagadora maioria do crédito hipotecário foi contratado a taxa variável e, portanto, com subidas significativas das respetivas prestações.
O que pode explicar que a subidas das taxas de juro não tenha desestabilizado nem o mercado da habitação nem o crédito hipotecário?
Creio que o essencial da explicação tem que ver com a qualidade dos balanços das famílias e das empresas quando o ciclo de aumento das taxas de juro foi despoletado.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o preço das casas caiu moderadamente, apesar do custo das hipotecas estar em máximos de três décadas, porque há muito poucas casas à venda. Durante o longo período de taxas de juro próximas de zero muitas famílias aproveitaram para refinanciar as suas hipotecas com taxas fixas e muito baixas. Os que gostariam de mudar de casa pensam duas vezes antes de pôr a casa à venda porque teriam de prescindir de uma hipoteca com taxas fixas na casa de 2% ou 3%, quando a nova hipoteca ficaria por 8% ou mais.
Em Portugal o facto de os preços das casas terem continuado a subir fez com que as famílias ficassem disponíveis para os sacrifícios necessários para manter um ativo que continua a valer bem mais do que a dívida. Por outro lado, enquanto o valor do ativo for superior ao valor da dívida, também os bancos têm interesse em acomodar os casos em que haja maior dificuldade em cumprir as prestações.
Um outro setor muito sensível aos movimentos nas taxas de juro é o setor automóvel. Quando as taxas de juro sobem as prestações do crédito aumentam, a procura diminui, a concorrência entre vendedores torna-se mais forte, os preços ou as margens descem, etc.
O que verificamos, quer na Europa quer nos Estados Unidos, é que as vendas de automóveis recuperaram substancialmente em 2023 e as previsões para 2024 são de continuação do crescimento embora mais moderado.
Ao mesmo tempo em que não há sinais de catástrofe mesmo nos setores mais sensíveis às taxas de juro e ao encarecimento do crédito, do lado da inflação as coisas começam a ter melhor aspeto com o BCE a rever em baixa a estimativa da inflação para 2024 e a antever para 2025 o regresso ao conforto de taxas de inflação próximas de 2%, ou seja, não longe do cumprimento do mandato do BCE.
É provável que as taxas de juro de referência do BCE possam começar a descer já em junho deste ano e que, nos Estados Unidos o mesmo possa ocorrer mais ou menos na mesma altura.
Com um pouco de sorte vamos ter um episódio de desinflação da economia que obrigou a um choque monetário forte, mas que não nos vai custar uma recessão.
Quanto aos economistas espero que não entrem de novo em depressão por mais um falhanço nas previsões.
Como disse um economista célebre fazer previsões até nem é difícil, o problema é quando as previsões são sobre o futuro.
Não temos varinhas mágicas nem bolas de cristal. O nosso conhecimento não permite antecipar o futuro com a precisão das chamadas ciências empíricas. Nem por isso é menos importante!
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