Tudo aponta para que na reunião de junho do Conselho de Governadores do Banco Central Europeu (BCE) as taxas de juro de referência da política monetária sejam reduzidas em 25 pontos base. A taxa a que o BCE remunera os depósitos dos bancos comerciais deverá passar dos atuais 4% para 3,75%.
Com a sua proverbial e manifesta incompetência, entre outras matérias no domínio da comunicação, o BCE deixou que se criasse um clima em que já não tem outra solução que não seja reduzir as taxas. Qualquer outra atitude, no ambiente que está formado, seria politicamente intolerável.
Este vosso criado tem defendido que a redução das taxas de juro até vem tarde, ou seja, se peca por alguma coisa é por ser tardia.
Contudo, não deixa de ser irónico que alguns dos dados macroeconómicos mais recentes até poderiam servir de argumentos para adiar, mais uma vez, a decisão de iniciar a trajetória descendente das taxas de juro.
Em maio, a inflação na zona euro subiu pela primeira vez depois de um longo ciclo de quedas. Depois de, em abril, a taxa de inflação ter registado o valor mais baixo dos últimos três anos (2,4%), em maio subiu para 2,6%.
Um outro dado, quiçá mais preocupante do ponto de vista dos decisores da política monetária, é a manutenção de taxas de variação dos salários nominais robustas, em particular na Alemanha que é a maior economia da zona euro e, como tal, o maior contribuinte para a inflação e para o produto da união económica e monetária.
Os acordos coletivos para fixação de salários na Alemanha incorporam uma subida de 6,2% no primeiro trimestre do 2024, o que corresponde a uma aceleração considerável em relação ao trimestre anterior onde a leitura homóloga foi de 3,6%. Para o conjunto da zona euro os números equivalentes são de 4,7% e 4,5%, ou seja, também aqui uma aceleração na subida dos salários nominais.
É provável que uma inflação de salários robusta implique uma inflação correspondente nos preços, em particular no setor de serviços onde a sensibilidade ao custo do fator trabalho é mais alta dado que os salários são geralmente a maior componente de custo dos serviços.
Como os serviços são a parcela mais pesada dos índices de preços nas economias de capitalismo avançado, inflação alta nos serviços implica, tudo o mais igual, inflação geral elevada.
Em suma, não faltarão aos detratores da política monetária do BCE argumentos para criticar a putativa decisão de baixar as taxas de juro.
Não obstante, a decisão é correta. Como tenho defendido neste espaço de crónica não podemos deixar que um par de indicadores, que eventualmente contradigam as grandes tendências, nos obscureçam a visão da grande pintura. A grande pintura é uma inflação em ciclo descendente desde o pico de 2022 e uma dinâmica salarial que, infelizmente, vai abater com tempo.
O caminho para a normalização inflacionista, ou seja, o caminho para uma expetativa estável em torno dos 2% no médio prazo, não é, não poderia ser, uma rampa lisa e uniformemente inclinada. Pelo contrário é, será como sempre foi, um caminho irregular, com lombas e depressões. Mas está a ser percorrido e o BCE deve guiar-se pelo caminho geral e não por incidentes estatísticos de percurso.
Claro que uma decisão como esta não é isenta de riscos, sobretudo quando o BCE vai iniciar o processo de descida dos juros antes da Reserva Federal Americana.
Ao aumentar a décalage entre as taxas de juro europeias e americanas é provável que o euro desvalorize em relação ao dólar nomeadamente se o ciclo de descida dos juros nos Estados Unidos se atrasar um par de trimestres.
Um euro mais fraco vai encarecer as importações e, com isso, podemos ter um novo empurrão nas taxas de inflação que pode vir a dar argumentos aos falcões que defendem que ainda é cedo para reduzir os juros na Europa.
Por outro lado, como o atraso no ciclo de descidas das taxas americanas tem empurrado para cima os juros dos títulos de médio/longo prazo nos Estados Unidos, é provável que essa circunstância também puxe pelos juros da dívida europeia um pouco independentemente do andamento das taxas de curto prazo na Europa. Ou seja, enquanto a Reserva Federal não se juntar ao grupo dos que vão reduzindo os juros, nem sequer podemos ter garantias da plena eficácia da política monetária na europa.
Deveríamos, por isso, esperar pelos americanos? Não creio.
Estamos nós e o tio Sam em posições muito distintas. Na América a procura privada, em particular o consumo privado, está bem e recomenda-se. Na Europa não é assim. Fomos muito mais afetados pela crise energética que resultou da invasão russa da Ucrânia e, por outro lado, as respostas de política monetária e orçamental à pandemia e à crise financeira foram muito menos robustas na europa do que na américa. Enquanto o consumo privado nos Estados Unidos já está no valor da tendência pré-pandémica, na Europa estamos ainda um bocado por baixo e, por outro lado, enquanto o PIB americano corre próximo do potencial, as economias europeias ainda estão a funcionar por baixo do seu potencial. É perfeitamente normal que sigamos ciclos de política monetária divergentes.
Seja como for convém que não alimentemos demasiadas ilusões a respeito do ciclo de descida dos juros na europa.
Não é nada provável que na reunião de julho deste ano o Conselho de Governadores do BCE declare uma segunda descida dos juros.
Se a descida de junho já é inevitável, é bem possível que os números que já saíram sobre preços e salários relativos a maio, e os números que vão ser públicos até à reunião de julho do Conselho de Governadores, moderem os entusiamos das “pombas” do BCE. O cenário que agora aparece como mais provável é o de mais um (no máximo dois) cortes suplementares até ao final do ano.
Claro que tudo vai depender da posição da Reserva Federal. Se os americanos se sentirem confiantes para começar também eles a reduzir as taxas de juro o processo europeu fica mais fácil e pode acelerar, se os americanos se mantiverem quietos as coisas ficam mais difíceis para as “pombas” do BCE.
Lembrar que nos Estados Unidos o fator político pesa nesta matéria. As eleições são em novembro e a Reserva Federal vai ser muito parcimoniosa em mexer nos juros antes das eleições. Uma descida das taxas de juro antes das eleições ajudaria muito Joe Biden na sua campanha pela reeleição. Em geral Reserva Federal prefere manter-se afastada das lutas políticas e uma das coisas que mais teme é ser acusada de envolvimento na luta político-partidária. Até por aí não vai ser fácil que a américa nos ajude muito nesta coisa dos juros. A ver vamos!
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