Representa a deficiência intelectual no seio da CNIS e é a voz de mais de quatro dezenas de associadas que em todo o país trabalham nessa área. A Humanitas – Federação Portuguesa para a Deficiência Mental tem desenvolvido um trabalho de representação e capacitação das suas associadas, que enfrentam diversos problemas, muitos transversais a todo o Sector Social Solidário.
Helena Albuquerque, presidente da Humanitas, aponta a carência de lares residenciais como um dos principais problemas que as instituições enfrentam, para além do subfinanciamento de diversas respostas como o Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão (CACI), a Intervenção Precoce na Infância ou o Centro de Recursos para Inclusão (CRI).
Considerando “uma vergonha” os vencimentos dos trabalhadores do sector, Helena Albuquerque defende um aumento da comparticipação do estado para que as instituições possam aumentar salários e, assim, conseguirem reter o talento, que agora foge, e ter condições atrativas para contratação de pessoal.
Nesta conversa com o Solidariedade, a presidente da Humanitas congratula-se com o trabalho desenvolvido pelas instituições da área da deficiência intelectual no sentido de trabalhar a inclusão dos seus utentes de forma plena na sociedade: “Não há sectores da sociedade que sejam interditos a pessoas com deficiência intelectual. Todos nós temos as nossas capacidades”.
SOLIDARIEDADE - Que retrato podemos traçar das associadas da Humanitas?
HELENA ALBUQUERQUE - Temos mais de 40 associadas de todo o país e apoiamos mais de 8.000 pessoas com deficiência intelectual. São IPSS modernas, viradas para fora de si e com uma crença muito grande de que a pessoa com deficiência intelectual não deve estar fechada nas organizações, mas deve estar fora delas. As instituições são um caminho de abertura para o exterior e é isso que as instituições estão a fazer.
Até há relativamente pouco tempo, a deficiência intelectual era algo que se escondia. Hoje já não é nada assim?
Nos últimos 10 anos fez-se um caminho muito grande nesse sentido. A deficiência intelectual tem características específicas, e por isso é que as comemorações próprias são importantes, que na maior parte das vezes passa ao lado do cidadão comum se não forem lembradas e tornadas presentes. Há uma característica muito específica que é a invisibilidade. Na deficiência física e sensorial são percetíveis ao olhar-se para as pessoas que as têm, a deficiência intelectual é quase um mundo à parte. Isto origina olhamos para uma pessoa que aparentemente não tem nenhuma deficiência, mas depois tem comportamentos que não são normalizados. E isso causa estranheza, que causa afastamento e isto cria isolamento. Isto prejudica imenso a deficiência intelectual, por isso temos que conhecer para incluir. Dar a conhecer estas pessoas e coloca-las cada vez mais no tecido social de todos é importante para vencermos essas barreiras. Acho que todas pessoas já perceberam que essas pessoas têm direito de estar em todos os sítios onde os outros estão. As instituições também trabalham muito para romper com os estereótipos, pelo que não há sectores da sociedade que sejam interditos a pessoas com deficiência intelectual. Todos nós temos as nossas capacidades.
O paradigma mudou definitivamente?
Tem havido uma grande evolução na área da deficiência intelectual. No princípio do século XX havia grandes instituições de armazenamento de pessoas. Curioso é que ao longo da história, a pessoa com deficiência intelectual sempre foi considerada um diabo ou um santo. Sempre foi uma pessoa que se devia banir da sociedade, um ser aberrante que não prestava, ou um ser que vinha de Deus para nos tornar melhor. Ainda hoje é assim… e isto é muito interessante. Isto foi assim até meados do século com as atrocidades que todos conhecemos, com o Hitler, etc.. Depois, em contraposição a este movimento, começou, na Europa e Estados Unidos, a surgir o movimento parental, que está na raiz das nossas instituições. Os pais defendiam que os filhos devem ser amados e protegidos e começaram a formar-se as associações para criar esse ambiente protegido. É quando, nos anos 1960 começam a surgir as APPACDM. Depois, progressivamente, a pessoa com deficiência começou a ter um lugar próprio como pessoa e, neste momento, acreditamos que é a pessoa que deve tomar o controlo da sua vida e fazer as suas escolhas. O papel das instituições não é de exclusão, não é de uma proteção absoluta, mas de proporcionar e criar condições às pessoas para serem completamente incluídas na sociedade. O papel das instituições é prepara as pessoas para saírem, mas também preparar o ambiente para que a pessoa não sinta a sua deficiência.
Se estivesse numa posição de poder, qual a primeira decisão que tomava?
Tenho aprendido que a noção de tempo é muito relativa. Nós que estamos à frente das instituições temos a noção de que há casos prementes e que têm de ser resolvidos de imediato… O nosso tempo de dirigentes das instituições é muito diferente do tempo do poder do governo, que são tempos que se prolongam muito. Quando se lida com pessoas a ação tem de ser imediata ou quase, porque o tempo não para. E muitas vezes os nossos governantes que a demora pode causar imensos prejuízos a quem espera.
E qual o grande obstáculo que as instituições desta área enfrentam que dificulta a prossecução da sua missão?
No momento presente, principalmente, na deficiência intelectual é, muitas vezes, a falta de aceitação real e falta de empatia para com estas pessoas. Avançámos na questão do politicamente correto, as pessoas sabem que não devem fazer certas coisas, mas o sentimento de afastamento é o mesmo. Tenho uma certa tristeza porque a recusa de algo que não conhecemos é natural do ser humano. E isso é de tal maneira inato no ser humano que não sei se alguma vez vamos conseguir a inclusão plena destas pessoas na sociedade. Nas escolas o grande problema de inclusão é com as pessoas com deficiência intelectual, não os com deficiência física nem a sensorial. Neste momento tem que ver com a diferença de atitudes e a falta de empatia e compreensão do cidadão comum a tudo o que não reage de forma a que ele possa prever. E por isso gera falta de empatia e, se calhar, não vamos ultrapassar isso tão depressa.
A questão da transformação dos CAO em CACI em que ponto está?
A legislação do CACI, em filosofia, correspondeu aos nossos anseios, algo que muitas instituições já praticavam, como abertura à comunidade, apostando mais na inclusão e não apenas na ocupação e formação. Agora, a legislação tem algumas questões, nomeadamente no que toca a recursos humanos, que nós só podemos e só vamos implementar essa legislação se nos derem um financiamento adequado para esse tipo de valência. Sem isso não temos cabimento orçamental para a implementar. Há uma grande exigência em termos de recursos humanos e também de instalações. A posição da Humanitas tem sido esta desde o início. Não há nenhuma associada da Humanitas que tenha implementado a resposta como deve de ser.
Nesse sentido, por altura do último Compromisso de Cooperação, que previa uma atualização financeira superior para ERPI e Centro de Dia, não gostou do tratamento desigual relativamente ao CACI?
Temos que lembrar que na área social a vertente dos idosos é muito poderosa, porque é transversal a toda a sociedade, toda a gente sabe o que é envelhecer. Tem uma força social muito diferente da deficiência. E temos que ter cuidado na área social para que a área da deficiência não fique para trás. E nunca compreendi por que é que os Centros de Dia tiveram um tratamento diferenciado do dos CACI, porque ambas as respostas têm os mesmos objetivos. Devem ser respostas olhadas equitativamente.
Sendo algo transversal a todas as instituições, o ser trabalhador numa instituição desta área não é fácil?
Não é nada fácil e tenho insistido que é uma vergonha o que pagamos aos nossos trabalhadores. Tenho insistido, até nas reuniões da CNIS, e é um problema que temos de encarar de frente. As nossas instituições não estão a conseguir reter talento, são quase instituições de formação. Muitos desses técnicos fogem para a Função Pública, que paga mais. Depois, com o aumento do salário mínimo, houve um esmagamento das tabelas salariais. Neste momento, uma pessoa com mestrado, em início de carreira, leva para casa menos de mil euros.
Sendo que estas instituições têm uma componente técnica muito grande nos seus quadros de pessoal?
E muito especializados. E quando se trabalha com pessoas temos de ter um bem-estar e um conforto muito diferente de quem trabalha com máquinas. E quando se trabalha com pessoas não se pica o ponto, tem de se dar amor, carinho e estar disponível. E para se estar disponível é preciso ter-se um mínimo de conforto financeiro. É muito grave o que estamos a fazer aos trabalhadores da área social e este devia ser um assunto prioritário na agenda da CNIS e demais organizações representativas do sector. Temos de arranjar forma de compensar os nossos trabalhadores. Com o financiamento que temos isso é impossível. As instituições vivem sempre no fio da navalha da sustentabilidade e ou não investem e não se atualizam ou investem e passam a viver no fio da navalha.
As associadas da Humanitas também sentem dificuldades de recrutamento, como as demais IPSS?
Sim, há técnicos que não conseguimos. Tudo o que tenha equiparação na Função Pública e no privado temos dificuldade em recrutar, é o caso dos terapeutas ocupacionais e da fala, em especial.
E também se sente a dicotomia litoral-interior nas IPSS da área da deficiência intelectual?
Sente e, na questão de contratação de colaboradores, ainda é agravado no interior. As pessoas, pura e simplesmente, não vão.
Como é a relação da Humanitas com as associadas e quais as solicitações mais frequentes que elas fazem à Federação?
Neste momento, estamos a atravessar o período difícil na deficiência intelectual. Começamos logo na Intervenção Precoce na Infância é uma valência altamente deficitária, ou seja, o trabalho que estamos a fazer está longe daquele que gostávamos de fazer. Porque o número de acordos de cooperação que temos é muito inferior ao número de crianças que atendemos. Enquanto não houver mais financiamento, não podemos atender com a qualidade que desejávamos. A proporção é de um para dois, ou seja, somos a resposta é financiada a 50%. Depois o CRI, que também tem financiamento deficitário. A escassez de recursos é notória. O que estamos a assistir é a empresas privadas a entrarem nas escolas e a fornecer atendimento aos meninos que podem pagar dentro das escolas. Há uma escassez de recursos humanos nesta área. Isto para dizer que o que a Humanitas tem feito como objetivo principal é, primeiro, estar junto das associadas para ouvir as suas necessidades e transmitir a quem de direito e tomar posições para uniformizar posições. O segundo objetivo tem sido de pôr as associadas a colaborarem umas com as outras. Temos feito muitas reuniões para que as instituições possam partilhar as suas práticas e experiências. Muitas vezes, falta um pouco de estratégia às instituições, tal como aos nossos governantes, mas ao juntarmos as instituições permite a reflexão e até o estabelecimento de compromisso a médio e longo prazo. Outro propósito que a Humanitas tem é levar às associadas um aprofundamento da ação e da reflexão, por exemplo, através de ações formativas.
E como é a relação com a CNIS?
Penso que havia muito mais a fazer por esta área. A CNIS é constituída por IPSS que, na maioria, são instituições da área dos idosos, o que desequilibra logo as forças dentro da CNIS. Penso que a CNIS tem feito um bom trabalho, mas podia fazer mais…
Como por exemplo?
Nas suas negociações e em toda a sua postura chamar mais a atenção para alguns problemas mais específicos da área da deficiência. Devia ter uma ação muito mais incisiva e assertiva nesta área. Estamos aqui, a CNIS também somos nós e a Humanitas tem feito para que a deficiência tenha a sua voz.
E entre PRR e PARES, há muitas obras a serem feitas pelas associadas da Humanitas?
Infelizmente, o PRR não entrou muito nas nossas instituições. No PARES sentimos bastante, houve um empenhamento do governo para a construção de lares residenciais e veio responder a esta grande carência que temos. Os fundos europeus não financiam lares residenciais para pessoas com deficiência e esta é uma valência em que temos grande carência. A terceira idade nestas pessoas é uma coisa recente. Mal ou bem, estas pessoas dantes tinham uma esperança de vida mais curta e havia uma estrutura familiar mais sólida. Agora, a esperança de vida é maior, mas, em geral, estas pessoas envelhecem antes do que as demais pessoas. Ou seja, eles envelhecem em conjunto com os pais, pelo que a carência de lares residenciais é muito grande. Basta ver o número de pessoas que estão em CAO e o número de camas em lares residenciais. É uma diferença abismal… Houve uma aposta nas residências autónomas, e bem, mas o problema é a deficiência mais profunda.
“É preciso conhecer para incluir”, a frase é sua, e o dia 10 de maio, Dia Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual foi a última grande vitória da Humanitas?
Penso que foi uma vitória de todas as pessoas com deficiência intelectual. É importante termos espaços e momentos próprios para que possamos tornar a deficiência intelectual visível. Foi muito gratificante este processo ter tido o impacto que nunca imaginámos. Em pouco tempo arranjámos 10.200 assinaturas. Houve uma grande mobilização social, houve grande adesão da sociedade. E nestas comemorações todas as instituições celebraram com grande vigor, dizendo presente.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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