À boleia da comemoração do Dia Nacional da Paralisia Cerebral, assinalado no passado dia 20 de outubro, a Volta a Portugal da Solidariedade desta edição foca-se nesta condição pessoal que afeta mais de 20 mil portugueses.
A Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral (FAPPC) é a organização representativa das 18 instituições associadas que cobrem de norte a sul, Madeira e Açores incluídos, o território nacional tentando dar resposta a quem precisa de ajuda, seja quem vive com aquela condição, sejam familiares ou cuidadores.
Em entrevista ao Solidariedade, Rui Coimbras, presidente da FAPPC, faz um retrato crítico em relação aos poderes políticos, deixando um forte elogio à capacidade de resiliência das associações de apoio às pessoas com deficiência.
“Estamos a trabalhar no fio da navalha, tentando fazer tudo e mais alguma coisa para não falharmos com a nossa missão”, afirma numa referência direta ao subfinanciamento do Estado às IPSS, asseverando: “Não é função dos dirigentes das instituições preocuparem-se exclusivamente com as questões financeiras”.
SOLIDARIEDADE - Que retrato podemos traçar das instituições que trabalham a paralisia cerebral em Portugal?
RUI COIMBRAS - É um retrato muito simples de se fazer! As instituições de paralisia cerebral em Portugal, de norte a sul, Açores e Madeira, trabalham todos os dias de forma incansável e dedicada para melhorar a qualidade de vida das pessoas com paralisia cerebral, bem como das suas famílias e cuidadores. Temos gente competente e dedicada, quer seja a nível de técnicos, quer também de dirigentes e de voluntários. Posso afirmar convictamente que todos trabalham com apego e afinco para se ultrapassar todas as dificuldades que surgem dia após dia, quer sejam dificuldades inerentes à gestão regular das instituições, quer seja também por outras “dificuldades” com as quais nos confrontamos pela inadequada forma de financiamento público, ou também por legislação inadequada e que nem sempre encara as pessoas com deficiência como uma considerável parte da sociedade.
Qual o grande obstáculo que as instituições enfrentam atualmente para melhor prosseguirem a sua missão e função?
Como já referi, o tal “grande obstáculo” divide-se em duas vertentes. Legislação inadequada e que nos esquece, por um lado. Depois, paralelamente, um gritante subfinanciamento de um sector que é fundamental. Estamos, em algumas áreas, a trabalhar com valores e contratos que não merecem atualização (financeira ou de competências). Mais do que as verbas, preocupa-me andarmos a trabalhar com base em documentos que são constantemente adiados em termos de implementação e adequação. Os CACI, são exemplo disso. Dá-me a impressão que ninguém se preocupa. Que seremos, como alguns dizem, filhos de um Deus menor... E com todo o respeito pelos muitos que têm fé, eu, pessoa com paralisia cerebral e, portanto, com deficiência, não quero ser filho de um Deus menor... ou maior!
Em termos de respostas sociais na área da paralisia cerebral, quais as grandes lacunas?
As associações do sector social, na sua grande maioria, nascem da preocupação de pais, de familiares e de técnicos para colmatar as lacunas existentes. Ou seja, fomos nós que definimos prioridades em relação às respostas inexistentes a nível estatal. Começámos no essencial e prioritário, avançando, aos poucos, para outras respostas e valências. Não teremos, portanto, “grandes lacunas”, mas temos, inegavelmente, falhas e lacunas para as quais gostaríamos de encontrar solução e caminhos. Da nossa parte existe conhecimento, dados e opções em relação aos próximos passos, mas, admito, alguns desses passos não poderão ser realizados de forma individualista. Ou seja, apenas porque nos apetece. São decisões que deverão ser partilhadas e contratualizadas com quem de direito. Os acordos celebrados com o Estado ficam aquém do necessário para que se possa prestar um serviço com ainda mais qualidade. Ou, até, com novas valências. Ninguém me ouvirá dizer que as associadas da FAPPC querem mais dinheiro para isto ou para aquilo, mas certamente que me ouvirão dizer, e já o fiz várias vezes, que as verbas resultantes dos acordos têm de ser revistas. Que há serviços em relação aos quais a resposta terá de ser mais completa. E que há, ainda, zonas “a descoberto” em relação às pessoas com deficiência. Sou defensor do rigor e da exigência. E o nosso nível de exigência leva-me a considerar que este subfinanciamento já nos forçou a ultrapassar os mínimos do que é aconselhado. Sei, com números concretos, dos casos de associadas da FAPPC que para manterem serviços, e qualidade dos mesmos, estão a entrar em situações de endividamento. Ou, para não o fazerem, conseguem internamente direcionar verbas entre serviços, para que assim nada falhe. E não é função dos dirigentes das instituições preocuparem-se exclusivamente com as questões financeiras. Devem, antes, preocupar-se com os serviços que prestam. E em relação a quem o fazem. Apenas peço, e exijo, que exista um financiamento justo.
Mas a FAPPC tem vindo nos últimos anos a referir uma lacuna específica... um “desaparecimento das estatísticas” numa certa altura. A que se refere?
Refiro-me às pessoas com deficiência que aos 18 anos parece que “desaparecem do radar”. Ou seja, deixam de “existir” em termos numéricos. Nascem e seguem caminho pelos serviços de infância. Depois continuam com a intitulada Escola Inclusiva, tema que por si só mereceria uma entrevista específica... A seguir, aos 18 anos, há poucos caminhos que se lhes proporcionam. O Ensino Superior ainda é, praticamente, inacessível por diversas razões. E, pior, a empregabilidade para uma grande maioria ainda é um sonho por concretizar. Assim, aos 18 anos, uma pessoa com deficiência corre sérios riscos de se evaporar em termos estatísticos. E “reaparecerá” anos mais tarde quando vier a necessitar de apoio específico, quer seja institucionalizado ou com o desejável apoio à vida independente. Mas há aqui um hiato de décadas! E há, na comunidade adulta de pessoas com deficiência, uma grave ausência de respostas. E há ainda que considerar que nem todas as soluções, institucionalizar ou desinstitucionalizar, se podem aplicar de forma indiscriminada. A FAPPC acredita na desinstitucionalização, desde que avaliando caso a caso e deixando a escolha à opção individual de cada um de nós!
Como tem sido a transição dos Centros de Atividades Ocupacionais (CAO) para os Centros de Atividades e Capacitação para a Inclusão (CACI) e quais os principais obstáculos?
A implementação da lei dos CACI foi suspensa em março de 2023. E se o foi é porque algo falhou no processo... E já desde março de 2023 que, com expectativa, a FAPPC e outras federações aguardam pelas desejadas reuniões com a tutela para uma necessária revisão desta lei. Desde há anos que são inúmeros os pontos que a FAPPC quer rever e discutir em relação a esta mudança de CAO para CACI. Mas há um ponto que classifico como verdadeira aberração. Definiram, no papel, em lei, um lamentável rácio de “um para 10” na paralisia cerebral. Ou seja, um funcionário para um grupo de 10 pessoas. Será que fazem ideia daquilo que quiseram impor no papel? É impossível! Esqueçam! Não existe tal possibilidade e nunca irá funcionar nas nossas associadas. Os clientes/utentes com paralisia cerebral em regime de CAO/CACI são pessoas extremamente dependentes de ajuda de terceira pessoa nas normais atividades da vida diária. E este rácio é uma mera ficção que nunca conseguiremos implementar. E se a lei é “ficção”, exige-se que a mesma seja revista.
Como contornar o problema da falta de terapeutas, especialmente, terapeutas da fala?
Esta pergunta remete para uma anterior, sobre a revisão dos acordos de financiamento. O nível do custo de vida aumentou. Tudo aumentou. Até os ordenados, ainda que de forma insuficiente... E os acordos não acompanharam tal evolução. Assim, em termos práticos, o sector social paga o que está definido pelos acordos. O que, admito com alguma vergonha, é muito pouco quando se faz uma simples comparação com o restante mercado de trabalho. A falta de terapeutas da fala... a falta de psicólogos... a falta de auxiliares... a falta de todo e qualquer profissional no sector social tem uma explicação muito simples! Se tenho propostas no sector privado que me oferecem 100, terei todos os motivos para não optar pelo sector social que me oferece 60 ou 70! Mesmo que até tenha uma verdadeira paixão por este serviço social! Hoje já nem se coloca a questão de reter os melhores. Hoje, o problema já nem é reter. É mesmo conseguir-se contratar. Por isso, presto um elogio a todos e todas que, no sector social, conseguem resistir à tentação de melhores salários e optam por dedicar as suas competências a uma causa muito específica. E já nem vou abordar o estreitamento salarial entre diferentes categorias. Daqui a uns tempos teremos distintas funções e responsabilidade remuneradas de forma praticamente idêntica.
A questão remuneratória também tem levantado problemas de recrutamento às instituições da área da paralisia cerebral?
Problemas?... E que problemas! Podemos separar esta questão em duas respostas. Em primeiro lugar, e como legalmente se impõe e é justo, a grande maioria das remunerações dos trabalhadores das IPSS concretiza-se 14 meses por ano, mas os acordos só contemplam a remuneração para 12 meses. O que fazer em relação aos restantes? Fazer de conta? Incumprir? Ignorar os direitos dos trabalhadores? Ou, então, mais uma vez, descobrir uma solução para “tapar” mais um buraco... Só que quando os buracos começam a ser muitos, a queda pode ser fatal e podemos ter associações que “desistam” e deixem de prestar um serviço fundamental. Mas há outra questão, a nível remuneratório, que nos deixa muito preocupados. O sector social “trabalha” com uma tabela que não reconhece, não premeia e não remunera adequadamente os seus recursos humanos. Esta questão, bem como várias outras, já mereceram a nossa reflexão e protesto. Faz parte de um caderno reivindicativo que temos vindo a apresentar aos responsáveis políticos. E a ausência de resposta não é deste Governo. É deste, do anterior e de outros... A área da deficiência não tem merecido, de há vários Governos a esta parte, a devida atenção.
Em relação ao “apego e afinco” inicialmente referidos, será também algo de necessário por parte de quem é dirigente e não apenas dos funcionários?
Assuma-se o seguinte: a grande maioria dos dirigentes associativos desempenha tal função em regime de voluntariado. Por dedicação à causa e amor à camisola. Em Portugal não se reconhece o trabalho dos dirigentes associativos. Tal como eu, muitos destes dirigentes têm atividade profissional fora do sector social. O tempo que damos, sem nada exigir em troca, é porque acreditamos naquilo que fazemos e na importância daquilo que resulta deste nosso trabalho. Mas, confesso, às vezes é um “jogo de equilíbrios” muito complicado. Por vezes, acaba por se penalizar e prejudicar a questão profissional e, principalmente, a familiar. Sei que muitos são como eu... E que querem estar presentes, contribuir e ajudar neste caminho partilhado. Mas o “estar presente” durante horário laboral implica uma séria gestão de dias de férias, de ausências e, até, de desculpas familiares. O que, refira-se, se verifica por uma boa causa. Cabe ao Estado responder a várias perguntas. Querem dirigentes associativos ausentes? Ou que apenas compareçam para marcar presença? Ou, antes, querem dirigentes que produzam? Que possam aplicar o seu tempo para atingir de resultados concretos? Estas perguntas terão de ser respondidas pelo Estado e não por mim.
Se estivesse numa posição de poder, qual a primeira medida que tomava em prol das instituições da paralisia cerebral?
Esta é a resposta mais simples e mais curta de todas. Rever os Acordos de Financiamento e indexá-los à tabela remuneratória, não os deixando dependentes de boas vontades ou caridadezinhas. Feito isto, muito mais... Até temos os assuntos elencados. E por ordem de prioridades.
A inexistência de números ou dados estatísticos preocupa-o?
Claro! Sem dados concretos não se conseguem implementar políticas. Só se consegue gerir o que se consegue medir. Nos Censos quase que desapareceram os dados estatísticos relativos às pessoas com deficiência. Mas isso nem seria muito grave, pois parte desses dados existirão já, em termos formais, a nível da Segurança Social e da própria Autoridade Tributária. Acho que é uma questão que é duplamente preocupante. Em primeiro lugar, e em termos públicos, as pessoas com deficiência desaparecem das estatísticas, mas também desaparecemos na efetiva implementação de políticas para pessoas com deficiência. Haverá dados fiáveis, mas ninguém quer saber onde estão ou, até, nem querem fazer a devida utilização e processamento dos mesmos. A partilha de dados entre Ministérios, mantendo a anonimização dos dados, permitiria dar já uma realidade bastante boa.
Como é a relação das associadas com a FAPPC e quais as solicitações mais frequentes?
Considero que o diálogo FAPPC com as associadas e vice-versa é um canal bidireccional. A FAPPC existe para defender as suas associadas, responder aos seus anseios e ser a voz representativa de um universo de mais de 20 mil pessoas com paralisia cerebral. Lá está a falta de números. Mais de 20 mil pessoas, admitindo a possibilidade de sermos muitos mais. Em termos de trabalho feito, assinalo com satisfação um crescimento constante. Anteriores Direções da FAPPC tiveram um papel muito importante ao consolidarem um projeto. Agora, de forma ponderada, queremos ser sempre mais e melhor. Mas o nosso trabalho e dedicação são reconhecidos. Da mesma que reconhecemos trabalho e imensa dedicação de todas as nossas associadas.
E como é a relação com a CNIS?
O relacionamento institucional e de trabalho com a CNIS é muito positivo. Nem sempre estaremos de acordo com a agenda ou com os prazos de implementação da mesma, mas são discordâncias naturais num processo dinâmico. Partilhamos, com a CNIS, posições e reivindicações. Até partilhamos, com a CNIS, um elemento comum, muitas das vezes presente e interventivo na dupla função de dirigente da CNIS e também da FAPPC e de uma das suas associadas. Refiro-me ao Gil Tavares, uma das nossas vozes mais ativas e elemento com imensa experiência e ponderabilidade. Às vezes, o Gil Tavares tem o “dom” de ser a nossa voz da consciência e de nos trazer de volta a alguma racionalidade, usando, excelentemente, a sua capacidade de diálogo e de consensualização de ideias e políticas.
Dia 20 de outubro celebrou-se, uma vez mais, o Dia Nacional da Paralisia Cerebral. Em que medida é importante assinalar a data? A visibilidade das pessoas que vivem com essa condição tem melhorado?
O Dia é importante, mas ainda mais importantes são os restantes 364 ou 365 dias. Este dia, 20 de outubro, serve principalmente para mostrarmos politicamente o que é preciso fazer em relação às pessoas com paralisia cerebral. Serve também como momento de convívio e de partilha entre todas as nossas associadas. E concluo, portanto, com um forte elogio à Associação de Paralisia Cerebral de Vila Real, anfitriã das comemorações deste ano. Proporcionaram um programa muito digno, diversificado, participado e inegavelmente interessante.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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