A afirmação em título pode parecer paradoxal.
Na verdade, se alguma coisa parecia poder ajudar os democratas nas eleições para a presidência americana era a economia.
A economia americana estava bem e recomendava-se no final de 2024, a crescer próximo de 3% anualizados (acima do potencial) e a inflação mantinha uma trajetória descendente a caminho dos canónicos 2%. A expetativa em relação às taxas de juro era que continuassem a descer ao longo de 2025 na casa dos cem pontos base.
A taxa de desemprego estava muito próxima dos 4% e a economia continuava a criar empregos a um ritmo robusto. No trimestre antes das eleições, em novembro de 2024, a economia adicionou 173.000 empregos por mês.
Sob qualquer ponto de vista macro o legado económico de Joe Biden é simplesmente notável.
Durante os quatro anos da presidência Biden a economia cresceu +/- 3% em média por ano, em acumulado quase 13% e foram criados 16,6 milhões de novos empregos. Em resultado da criação robusta de empregos, em janeiro de 2023, a taxa de desemprego atingiu 3,4%, um mínimo histórico de 54 anos.
O salário horário médio nominal cresceu quase 20% durante a presidência Biden tendo os crescimentos mais significativos ocorrido nos salários mais baixos.
O consumo privado manteve um dinamismo notável não obstante o crescimento dos preços em resultado do surto inflacionista de 2022/2023 e da subida das taxas de juro, a qual se tornou necessária para dominar o surto inflacionista.
Foram lançados programas de política industrial, nomeadamente o Inflation Reduction Act e o Chipps Act, com os quais foi possível comprometer cerca de 1 trilião (milhão de milhões) de dólares de investimento privado. Depois da passagem dos programas de política industrial o investimento em construção de novas instalações fabris subiu a pique.
Finalmente, o principal índice bolsista americano subiu cerca de 50% entre o início de 2021 e o final de 2024.
Melhor, nem por encomenda!
Não obstante, todos os inquéritos de opinião diziam que a maioria (cerca de dois terços) dos eleitores considerava que Donald Trump seria melhor a gerir a economia que qualquer candidato democrata.
Por outro lado, a presidência Biden falhava o famoso teste de Reagan. Durante o debate final para a campanha presidencial em 1980 Ronald Reagan colocou ao público presente a questão verdadeiramente crucial: “estão melhor agora do que estavam há quatro anos atrás?”.
Acontece que, não obstante a quase estrelar performance da economia durante a administração Biden, no final de 2024, uma clara maioria de americanos afirmava estar numa situação financeira pior do que aquela em que estava quando a administração incumbente entrou em funções.
Como compreender o paradoxo? Como compreender uma tal negatividade do público em relação à economia quando os indicadores macro pareciam tão positivos?
Em boa verdade a administração democrata tinha um calcanhar de Aquiles complicado.
O surto inflacionista de 2022/2023 deixou marcas profundas em muitos americanos. Embora no final de 2024 a inflação estivesse em curso descendente, a verdade é que o índice dos preços dos bem de consumo estava cerca de 20% acima dos valores registados na abertura da administração Biden em janeiro de 2021.
Por outro lado o carácter muito agregado dos índices de preços encobria a existência de múltiplas taxas de inflação dependendo do tipo de produtos.
Nomeadamente acontecia que os preços dos bens de consumo essenciais, nomeadamente a comida, os combustíveis e a energia de uma foram geral, subiram bem mais que a média.
Nos Estados Unidos os preços da comida e da energia subiram 28%, bem acima da média e cerca de 18% acima do nível a que estariam se a inflação tivesse subido os canónicos 2%.
Notar que o fenómeno não é exclusivamente americano. No Reino Unido os preços dos bens essenciais subiram 30% no mesmo período e na zona euro o número equivalente é de 26%.
Na verdade, embora o consumo agregado nos Estados Unidos se mantivesse robusto, a situação era claramente dual. O consumo da parte superior da escala de rendimentos continuou a mostrar dinamismo, contudo, na parte baixa da escala de rendimentos as dificuldades eram óbvias. Pressionados pela subida do custo das hipotecas e pelo aumento dos preços dos bens essenciais, muitas famílias americanas da parte baixa da escala dos rendimentos estravam a passar dificuldades.
Essas dificuldades manifestavam-se em vários domínios ao nível mais micro. Assim que as poupanças constituídas durante a pandemia se esgotaram, o incumprimento das dívidas dos cartões de crédito bem como das dívidas para aquisição de automóveis passaram para níveis próximos ao período subsequente da crise de 2008/2009.
Por outro lado os relatórios e contas das empresas de distribuição também não deixam dúvidas. Cadeias de distribuição retalhista como a Walmart continuaram a apresentar crescimentos robustos enquanto que a lojas de hard discount, sobretudo frequentadas pelas famílias de recursos mais baixos, sentiam dificuldades.
A grande ironia da administração Biden é que, contrariamente ao que seria o seu objetivo, deixou pior as classes mais baixas da distribuição de rendimentos o que ajudou Donald Trump a construir uma imagem negra da economia americana mesmo quando os números macro eram excelentes.
Ironia também porque é difícil atribuir responsabilidades à administração Biden por aquilo que aconteceu. Na base de tudo isto está um surto inflacionista largamente exógeno em resultado dos desequilíbrios entre oferta e procura gerados pela pandemia.
Podemos eventualmente discutir se a largueza da política fiscal americana bem como uma política monetária fortemente expansionista colocadas no terreno para combater os efeitos da pandemia não atiçou ainda mais o surto inflacionista.
Talvez! Seja como for, os fatores exógenos e incontroláveis pela administração Biden, foram os principais responsáveis.
De qualquer forma sabemos que Donald Trump melhorou o seu score eleitoral entre os negros os latinos e os imigrantes, grupos predominantemente da parte baixa da escala de rendimentos que tradicionalmente votam democrata.
Em conclusão, contrariamente a todas as aparências, não obstante a solidez os números macro da economia da administração Biden, a verdade é que a economia pode mesmo ter ajudado Donald Trump a ganhar as eleições e vamos ter que viver com isso os próximos quatro anos. E não vai ser fácil!
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