PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

A ação humanitária em perigo

O ano começou mal para a ação humanitária global, com o encerramento da United States Agency for International Development, conhecida por USAID, que era o maior financiador mundial, num sinal de desinvestimento do país nesta forma de alívio do sofrimento humano, deixando um espaço vazio que outros muito dificilmente preencherão.

Os cerca de 14 mil milhões de dólares de ajuda humanitária do governo americano reportados em 2024 ao Serviço de Reporte Financeiro do Gabinete de Coordenação da Ação Humanitária das Nações Unidas (OCHA)[1], corresponderam a 43% do total mundial e, com pequenas flutuações, a importância da ajuda americana nos últimos anos tem sido sempre da mesma ordem de grandeza.

O lugar que os EUA deixam vago, total ou parcialmente a partir de agora, não poderá facilmente ser ocupado por outros doadores.

Mesmo antes desta alteração estratégica por parte dos EUA, as disponibilidades financeiras do mundo para fazer face às necessidades humanitárias eram muito baixas. Em 2024, o OCHA estimou as necessidades global de financiamento da ação humanitária em 49,5 mil milhões de dólares, mas os doadores apenas financiaram cerca de 48% das verbas solicitadas.

As notícias dão conta de que o fecho da USAID tem efeitos imediatos em alguns contextos humanitários já muito difíceis, como em Gaza, em que os EUA foram doadores cerca de um terço da ação humanitária desde o início da guerra.

Um memorando de Nicholas Enrich, responsável na área da Saúde da USAID, divulgado pelo New York Times[2] estima o impacto do fecho da USAID na malária (mais 18 milhões de infeções e 166 mil mortos), na poliomielite (mais 200 mil crianças paralisadas e centenas de milhões de infetados), na subnutrição (mais de um milhão de crianças não assistidas) e nas doenças hemorrágicas (mais 28 mil infetados em Ebola e Marburg por ano).

A nova administração americana procurou desacreditar a sua agência através de uma operação de desinformação, que procurou desacreditar o seu papel no mundo e apresentar esta profunda alteração na política exterior como um gesto de aumento da eficiência da despesa pública.

 Muitos países que dependiam até agora da USAID para satisfazer necessidades fundamentais das suas populações desfavorecidas. Terão necessariamente que voltar-se para outros doadores. Alguns esperarão mais da Europa, que, através da Comissão Europeia e de alguns dos seus Estados-Membros (em particular a Alemanha, os Países Baixos, a Suécia, a Dinamarca, a Bélgica, a Irlanda, a Itália e o Luxemburgo). Não se sabe ainda como a Europa, embrulhada numa política de rearmamento, responderá realmente a este novo desafio. Mas a União Europeia já fez saber que, se não recuará nos seus compromissos financeiros, também não pode preencher o espaço “deixado por outros”

Fala-se de a China ou mesmo a Rússia poderem ocupar o vazio que os EUA deixam. Tal não será possível sem uma profunda inflexão política nestes países, tendo em conta que a China apenas reportou à ONU 7,9 milhões de dólares de ajuda humanitária em 2024 e a Rússia, 1,5 milhões. É certo que por razões políticas, ambos os países podem alocar fundos significativos análogos a ação humanitária fora do quadro do sistema das Nações Unidas. O mesmo pode, quem sabe, fazer a partir de agora a administração Trump.

Mesmo que essa conjugação de gestos minore o efeito devastador da retirada do terreno humanitário dos EUA, é muito provável que o vazio da retirada dos EUA fique largamente por preencher. E mesmo que o seja parcialmente, por potências que não se comprometam com os princípios basilares do humanitarismo de humanidade, neutralidade, imparcialidade e independência, continuará a significar um duro golpe num sistema que durou décadas a erguer, tinha alguma autonomia dos interesses geopolíticos específicos de cada potência e, com todos os seus defeitos, procurava chegar onde estavam as necessidades.

Também neste domínio a Administração Trump está a abalar o mundo, para pior. Desistindo do mundo que ajudou a construir e de que era um princípio basilar desde a segunda guerra mundial, os EUA estão a trazer de volta o tempo sombrio das grandes potências fechadas na política de poder, o que augura tempos difíceis para as populações em sofrimento. Desse sofrimento não nascerá nem um mundo melhor, nem sequer um mundo mais seguro. 


[1] Pode aceder-se online ao histórico dos fluxos financeiros da ação humanitária comunicada ao OCHA em https://fts.unocha.org/

 

Data de introdução: 2025-03-19



















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