Três amigos chegaram ao aeroporto de Lisboa, vindos de um voo intercontinental, com a quantidade de bagagem de umas férias relativamente longas. Duas das pessoas no grupo eram caucasianas, uma tinha um perfil físico que permitia aos olhos de um europeu classificá-la como hispânica. Haviam já passado o controlo de passaportes. Na alfândega, uma das pessoas foi parada e foi-lhe pedido que abrisse as malas, cujo conteúdo foi revistado com detalhe. Isto passou-se comigo há quase três décadas e a minha amiga, talvez hispânica nos seus traços raciais, encarou com normalidade o facto de ser a escolhida para ter a sua viagem verificada.
A caracterização racial na ação das instituições que garantem a aplicação da lei é um dado vastamente conhecido das minorias étnicas. A probabilidade de um cigano, um negro, um estrangeiro, uma pessoa LGBT serem parados e questionados ou revistados, é superior à de um caucasiano. Isso mesmo sublinhou no seu relatório anual de 2024, recentemente publicado, a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (CERI)[1].
Essa caracterização racial é uma das tendências que levantam preocupação abordadas no relatório, à qual se juntam a segregação escolar das crianças ciganas e o não reconhecimento de direitos iguais a pessoas transgénero e intersexo.
O exercício denunciado pela CERI é prática corrente na Europa, embora seja um ato discriminatório que viola o princípio a dignidade humana, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, entre outros instrumentos internacionais e, no caso português, a Constituição da República.
Casos de caracterização racial chegaram já ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos[2]. A Alemanha foi condenada em 2022 por a polícia ter escolhido para controlo de identidade, dentro de uma carruagem de um comboio em que eram os únicos não brancos, um cidadão alemão de origem indiana e a sua filha. Em 2024 foi a Suíça que foi condenada, desta vez por controlo com discriminação racial numa estação de Zurique.
O enviesamento racista dos humanos pode ser prolongado e potenciado no mesmo enviesamento pela inteligência artificial. As margens de erro em reconhecimento facial são maiores para peles mais escuras e para mulheres.
Estes enviesamentos não nascem no vazio e Portugal não é exceção na sua existência. Se ouvimos com frequência as autoridades portuguesas negarem a existência de racismo estrutural entre nós, não deixa de ser verdade que esse tipo de frases é meramente proclamatório, não refletindo a realidade dos factos na nossa vida coletiva.
O racismo estrutural mina a coesão da comunidade, gera tensões e ressentimentos, descredibiliza as instituições e, sobretudo, é uma violência humilhante sobre as minorias. Uma democracia, se parte do poder da maioria, tem um pilar igualmente fundamental, na proteção das minorias.
O combate à caracterização racial já é, embora com timidez maior do que devia, real. São conhecidos casos de boas práticas na prevenção da prática. Mas o problema persiste, porque radica no racismo estrutural. Tem subjacente a ideia de que há povos intrinsecamente “maus” e dos quais se desconfia mais do que de outros. Como todos os problemas, este só pode ser combatido com ações.
Um artigo recente de uma professora da Universidade de Utrecht[3] listou as ações necessárias para uma estratégia de combate â caracterização racial. Nelas se incluem conhecer melhor o fenómeno (recolhendo informação sobre a distribuição étnica dos visados em operações de controlo), formar e dar orientações aos profissionais contra a prática, recrutar agentes com diversas origens, criar e reforçar organismos de supervisão, estabelecer laços entre as autoridades e as minorias, combater os estereótipos nos media e na comunicação. A autora, Karin de Vries, defende que se deve ir mais longe, passando de boas práticas e soft law para instrumentos jurídicos clássicos de proibição da caracterização racial.
O debate sobre o que fazer é necessário. Chegou a hora de identificar o racismo estrutural e agir contra ele, começando pelas suas manifestações na ação do Estado.
[1] Relatório acessível online em https://rm.coe.int/annual-report-on-ecri-s-activities-covering-the-period-from-1-january-/1680b5bcd9
[2] Ver online a apresentação de casos de caracterização racial presentes ao TEDH, em https://www.echr.coe.int/documents/d/echr/FS_Racial_profiling_ENG
[3] de Vries, K. (2024). Is it time for a European Convention against Racial Profiling?. Netherlands Quarterly of Human Rights, 42(3), 225-232. Acessível online em https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/09240519241274846
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