1 - O final de cada ano é a ocasião estipulada para fazer o balanço do tempo passado - e para projectar as mudanças que é bom fazer-se para o futuro.
Pela minha parte, cumpro o ritual.
Nisto de balanços, que são uma espécie de resumos da realidade, corre-se sempre o risco de o nosso olhar, que vê mais facilmente o que está próximo do que o que está distante, se deixar contaminar pelos factos ocorridos no tempo mais recente, esquecendo o relevo de outros datados do início do ano que passou.
Toma-se assim a parte pelo todo, deformando o rigor e o equilíbrio do resumo.
Pressinto que de tal sinédoque não estará imune esta crónica.
Mas, na verdade, a minha impressão, nomeadamente no que diz respeito aos direitos sociais, é que 2005 ficou marcado pela desprotecção: desprotecção dos velhos e dos reformados, desprotecção das crianças, principalmente das mais novas.
A questão do ataque às reformas já me deu pano para mangas, numa outra crónica, uns meses atrás, pelo que vou hoje cuidar da protecção dos menores.
2 - Os últimos meses foram para esquecer (ou para recordar): duas crianças mortas num incêndio, em sua casa, em Vila Nova de Gaia; um bebé de um mês e meio internado num hospital em Viseu, vítima de abusos sexuais, em risco de vida; o julgamento e a sentença no caso da menina do Algarve, cujo corpo não apareceu; e tantos outros, espalhados pelo país e pelos meses do ano que passou, e dos anos anteriores.
Sempre que um caso desta natureza aparece na televisão, ou nos jornais, logo surgem os dedos acusadores apontando os Serviços Públicos como responsáveis dentro do princípio que temos por assente de a culpa ser sempre do Governo: da chuva ou do sol, da seca ou dos incêndios; e também dos nossos próprios comportamentos.
Nuns casos culpa haverá; noutros certamente que não; noutros ainda a culpa tem que ser repartida.
Claro que, quando sabemos de um caso de maus-tratos, ou de sevícias, ou de homicídio, todos gostaríamos que o Estado tivesse tido um agente no local um momento antes, que detivesse a mão que agredia; ou um olho, uma câmara de filmar, dentro daquela casa onde uma mãe, ou um pai, são, como diz o povo, pais "desnaturados", para os inibir, antes, ou fazer a prova, depois.
Importa, no entanto, não esquecer que esse agente, esse olho, essa máquina de filmar, não estariam apenas nas casas onde as agressões se consumam e que as televisões nos mostram mais tarde.
As famílias agressoras não trazem nenhum carimbo, para sabermos antecipadamente quais são.
A prevenção, para ser eficaz, exigiria esses meios de vigilância em muitos outros locais, em muitas outras casas, casas onde tais agressões não ocorrem.
Quiçá na minha, ou nas dos meus leitores.
Ora, no que me diz respeito, não estou disposto a ter a viver comigo, em minha casa, uma técnica de serviço social, ou um psicólogo, a tomarem conta de mim, em nome do Estado.
3 - Claro que há padrões, há comportamentos, de pessoas e de famílias, que trazem como que colado o anúncio de o risco deixar de o ser, e passar aos actos.
É evidentemente necessário que a sociedade, e os serviços públicos, estejam atentos a esses sinais e reforcem a vigilância e o acompanhamento.
Mas sem a pretensão de evitar toda e qualquer agressão, onde quer e quando quer que ocorra, já que tal é impossível.
O mundo não é um lugar perfeito, e quem o habita não são os anjos.
No caso da criança de Viseu, por exemplo, com apenas um mês e meio de vida, era quase materialmente impossível uma intervenção preventiva em relação ao menor, violentado quase desde que nasceu.
Mas os leitores estarão lembrados de que se encontra detido, como suspeito da agressão, o pai da criança, já com antecedentes em processos de inquérito de natureza aproximada.
Vamos supor que é culpado.
Como teria operado a prevenção? Castração química; prisão; máscaras, e cintos de castidade, como nos filmes?
Convém lembrar que os meios culturais e académicos que defendem o reforço da intervenção pública no seio das famílias em moldes que em muitos casos correm o risco de invasão da área de autonomia e livre determinação destas são os mesmos que clamam contra o número de presos preventivos no nosso país e contra a excessiva dureza das penas, são os mesmos que preferem a reinserção à punição dos criminosos, são os mesmos que querem humanizar ainda mais o cumprimento da pena, quer em regime de visitas, quer em saídas precárias e antecipadas.
Querem uma coisa e o seu contrário.
Querem o sol na eira e chuva no nabal.
Vê-se bem que são Portugueses.
* Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde
Data de introdução: 2006-02-15