1- O Governo encontra-se a preparar um novo modelo de financiamento das autarquias locais, de forma a que as receitas das câmaras não fiquem tão dependentes das licenças de construção como actualmente.
O princípio parece-me justo, pelo que acho boa a intenção do Governo.
Vista do avesso, no entanto, o que a proposta do Governo nos diz por baixo do texto aparente é que o mesmo Governo não acha brilhante a forma como as câmaras tem lidado com a actual forma de financiamento, transigindo e promovendo a descaracterização das povoações por se subordinarem aos interesses dos empreendedores imobiliários, o novo nome dos empreiteiros.
É por isso que o Governo quer mudar o sistema.
Parece-me bem...
A ideia de que nos últimos anos tem havido um forte desenvolvimento local, e de que este se deve ao poder autárquico, é, ao nível do discurso dos responsáveis políticos, um dos mitos mais persistentes dos nossos tempos. De tal forma que, mesmo sendo hoje quase unânime entre os cidadãos envolvidos na participação cívica a convicção de que se deve aos autarcas o caos urbanístico, a subordinação do interesse público ao interesse privado ( Paulo Morais dixit ), a degradação ambiental e a especulação imobiliária digna de um país do Terceiro Mundo, os políticos, mesmo os de maior responsabilidade, só nos interstícios das suas opiniões expressas é que ousam concordar connosco, cidadãos.
O certo é que do novo modelo de financiamento é suposto que resultem menores financiamentos para as autarquias, passando assim os autarcas a ter menos dinheiro para gastar.
O que seria também uma boa ideia, já que, se a crise nos castiga a todos, não há razão para deixar de fora do esforço colectivo aqueles que, como o Governo diz a medo, nos gastam mal o dinheiro.
2- Para obter o acordo dos autarcas para as suas propostas, o Governo oferece-se para compensar a anunciada perda de receitas com a transferência de outros recursos financeiros, de par com novas atribuições.
Assim, para 2007, prevê-se a criação de um Fundo Social Municipal, para várias dessas novas atribuições transferidas, entre as quais a Acção Social.
Não é uma ideia original.
Já no tempo do Dr. Vieira de Castro como Secretário de Estado da Segurança Social a proposta de transferência do Estado para as autarquias da Acção Social, aí incluindo o apoio, por via da cooperação, às instituições particulares de solidariedade social, fez parte da chamada agenda política.
A ideia voltou à ribalta quando era Primeiro-Ministro o Dr. Durão Barroso.
Tais tentações foram felizmente vencidas em ambas as ocasiões.
Regressa agora, e espero francamente que com tanto sucesso como das outras vezes.
Já sabemos que nas negociações que vai levar a cabo com a Associação Nacional dos Municípios Portugueses, o Governo não vai sair daquele registo de superfície de que falava no início esta crónica: de que o poder autárquico é o lugar geométrico do bem e da virtude, e os autarcas os seus profetas. Com a vantagem de poderem utilizar os nossos próprios princípios na justificação da medida: na verdade, se o exercício da acção social tem a proximidade como princípio estruturante, quem mais próximo – perguntarão retoricamente Governo e ANMP – dos cidadãos do que as autarquias?
Neste Jornal iremos também participando na conversa, com a diferença de não estarmos tolhidos pelo mito e de podermos, portanto, chamar as coisas pelo seu nome. ( “Há que dizer-se das coisas/ o somenos que elas são/ Se for um copo é um copo/ se for um cão é um cão.” – como escreveu o Ary dos Santos).
3 – Oportunamente , esta proposta do Governo veio à tona na mesma semana em que a Câmara do Porto deliberou que as instituições da cidade do Porto, para poderem receber apoio financeiro da autarquia, teriam que assinar um protocolo – na nossa linguagem, um acordo de cooperação - , com o compromisso de se absterem de criticar a Câmara.
É um tipo de linguagem – e de coacção – que tem estado ausente das políticas de cooperação nos últimos 25 anos. E que não vai entrar nela, por esta via oblíqua que parece preparar-se como efeito destas propostas.
Mal pareceria até que fosse pela mão de um Governo que proclama o reforço da cidadania e a defesa dos cidadãos como base das suas políticas que se reforçasse o “País do respeitinho” do O”Neill – e que é o país com que queremos acabar.
Portanto, e para que se saiba: se for isso que se prepara, cá por casa tencionamos resistir.
Nem que o Presidente da ANMP queira por essa razão correr- nos à pedrada, como em relação a outros ameaçou nesta mesma semana. Ou fazer-nos andar em pelo na rua, versão mais brejeira, mas igualmente edificante, com que procurou mitigar o tom da ameaça.
Talvez cobertos de alcatrão e penas, em nome do pudor...
Estes dois sinais, estes dois afloramentos de uma cultura de arrogância que de forma larvar grassa por tantas autarquias, ora pacóvia, ora trauliteira, ora sob formas tão sábias, tão subtis e tão peritas ( Sofia), felizmente vieram à mostra na semana em que o Governo veio com a novidade.
Ao menos, ninguém pode dizer que não sabia.
Deus não dorme...
Data de introdução: 2006-07-08