A Comissão Nacional de Justiça e Paz (CNJP) é um órgão laical da Conferência Episcopal Portuguesa. As comissões de justiça e paz nasceram na sequência de um apelo feito pelo Papa Paulo VI, em 1967, na sequência do Concílio Vaticano II, com o objectivo de contribuírem para a difusão e aprofundamento da doutrina social da Igreja e para constituírem uma ponte visível entre a Igreja e a sociedade civil. Em Portugal, a primeira comissão nacional só aparece em 1982, em Lisboa, quase 20 anos depois do Concílio. Um atraso que, provavelmente, ficou a dever-se ao período difícil que se vivia no país, com a Guerra Colonial e o salazarismo. Existem vários grupos de trabalho permanentes na CNJP, dois deles com grande representação. O Grupo de Reflexão sobre Economia e Sociedade tem-se debruçado, fundamentalmente, sobre a questão do emprego/desemprego, da globalização e dos seus efeitos, da sociedade civil, da necessidade de uma cidadania responsável e participativa para fazer face aos grandes desafios que se colocam nas sociedades contemporâneas e na área da responsabilidade social das empresas e da ética empresarial.
O Observatório sobre a Produção, Comércio e Proliferação das Armas é um grupo mais recente, com cerca de dois anos. Tem um estatuto próprio, trabalha sob a sua inteira responsabilidade, embora em estreita colaboração com a comissão. Foi nessas condições que organizou desde Novembro de 2005 até Maio de 2006 uma audição pública que teve por tema “Por uma sociedade segura e livre de armas”. Foi aprovada uma lei [Lei nº 5/ 2006, de 23 de Fevereiro] sobre o uso e porte de armas que responde às necessidades de segurança que a CNJP defende e que prevê a recolha facultativa. Essa lei dá possibilidade às pessoas que têm em seu poder armas ilegais de legalizarem essa posse ou de se desfazerem delas, entregando-as voluntariamente. “A comissão está interessada em contribuir para difundir essa informação e motivar as pessoas para que cumpram a lei e aproveitem a amnistia que a mesma prevê.”
SOLIDARIEDADE – Como surge a iniciativa que estão a preparar para Outubro intitulada simbolicamente “Por uma sociedade sem armas: desarmar os corações”?
MANUELA SILVA - Estamos a projectar uma festa, que vamos realizar a 28 de Outubro em Lisboa, destinada às crianças e jovens. Pensamos que são eles que terão maior receptividade a perceberem que é do seu interesse viverem numa sociedade mais segura e que as armas não são, necessariamente, uma segurança. Será uma grande festa à qual demos por título “Desarmar os corações”, porque acreditamos que na raíz desta proliferação do armamento está um défice de amor, de solidariedade.
SOLIDARIEDADE – Portugal, contudo, mantém-se abaixo da média europeia em termos de criminalidade e ainda se pode considerar um país seguro, tal como a cidade de Lisboa…
MANUELA SILVA - Lisboa e o país são com certeza situações mais seguras do que outras partes do mundo, mas também dentro da nossa cidade há zonas menos seguras. Queremos que todas elas, sem excepção, sejam zonas seguras. Para isso, não basta regulamentar o uso e porte de armas como esta lei faz. É positivo, mas não basta. É importante que se cuidem de dois aspectos fundamentais: reforçar a segurança, para que as populações tenham a convicção de que estão a ser defendidas e de que encontram protecção e atentar às condições sociais de algum habitat periférico das nossas cidades. Não podemos pôr debaixo do tapete as condições infra-humanas em que vivem alguns grupos populacionais, designadamente em bairros degradados. Nesse sentido, pensamos que é uma acção muito urgente fazer convergir os esforços dos poderes públicos, das autoridades e das organizações não governamentais para pôr termo a essas condições. Um país como Portugal, com o nível de rendimento per capita que já atingiu, não pode consentir que persista pobreza severa no seu território. Erradicar a pobreza não é uma tarefa impossível e se é possível, ela é obrigatória.
SOLIDARIEDADE – Dados estatísticos afirmam que 21% dos portugueses vivem em exclusão social e que o nosso país continua a apresentar números de pobreza absoluta semelhantes aos dos países subdesenvolvidos…
MANUELA SILVA - Esses dados são de facto reais e convém dizer que existem várias formas de exclusão social. Quando olhamos para essa problemática temos que ter uma visão compreensiva das várias formas de exclusão e de nos envergonhar de que ainda existam indicadores tão elevados quer de exclusão social, quer de pobreza absoluta.
SOLIDARIEDADE – Estamos então a referirmo-nos à eficiência das políticas. Está a falar de um esforço transversal de toda a política de intervenção estatal ou em termos mais sociais, por exemplo, agora com a nova Reforma Social?
MANUELA SILVA - Acho que o facto de falarmos em reforma social já é positivo. A discussão tem-se dirigido sobretudo ao problema das reformas e das aposentações, mas a segurança social é um campo muito mais vasto. Nesse sentido a transversalidade parece-me muito importante, tanto na resolução dos problemas que emergem, como na prevenção deles. Vou dar um exemplo: a questão do insucesso escolar, que é um problema que preocupa tanto a sociedade portuguesa, não é uma questão que possa ser resolvida só pelo Ministério da Educação. O problema tem que ser encarado pelo Ministério da Educação, mas também pelas organizações públicas e não governamentais que se ocupam dos jovens em risco, das famílias desestruturadas, da pobreza, etc. São problemas que estão interligados e não se pode adoptar uma solução unidimensional. Vendo agora a questão por outro lado, o insucesso escolar está na origem de problemas sociais e, portanto, é um bom exemplo de que só uma política e uma acção integrada podem esperar ter resultados positivos e com a máxima eficácia.
SOLIDARIEDADE – Em Maio passado a CNJP realizou um seminário subordinado ao tema “O desemprego, um desafio à coesão social e à cidadania”, onde consideraram “intolerável” o nível de desemprego em Portugal. Há que imputar responsabilidades a muitos actores ou o Estado tem o papel principal?
MANUELA SILVA - É certamente um problema para toda a sociedade resolver. Há responsabilidades particulares e com graus diferentes. Destaco as responsabilidades da política governamental, em geral, porque o desemprego também não é uma política exclusiva do Ministério do Trabalho e da Segurança Social. Todo o Governo deve estar preocupado com esta questão e com políticas que reduzam os números do desemprego e que minimizem os impactos negativos por ele causados. Mas há outros actores com grandes responsabilidades nesta área e refiro-me em particular às empresas. As empresas não podem continuar a querer aumentar indefinidamente os seus lucros à custa de contenção no emprego. À sociedade civil cabe também o papel de criar condições para a existência de novas iniciativas locais de emprego. Não se compreende que tendo nós tantas necessidades por satisfazer, sejam elas de apoio individual, de cuidados pessoais, de defesa do património, de promoção cultural, etc., não encontrem resposta, porque os recursos não estão suficientemente bem distribuídos nem correctamente direccionados para esse tipo de necessidades. Creio que se houvesse maior dinamismo a nível local, das autarquias, por exemplo, seria possível melhorar consideravelmente a qualidade de vida das pessoas.
SOLIDARIEDADE – No livro que a CNJP lançou em Janeiro passado, “Cidadania Activa – Desenvolvimento justo e sustentável”, pretendem desmistificar falsas verdades. Uma delas é a ideia do divórcio entre economia e ética. Crê na possibilidade das empresas serem competitivas e eticamente correctas, numa economia global?
MANUELA SILVA - É uma questão muito complicada. Vivemos num mercado global, o que não é necessariamente mau, pois facilita e promove o desenvolvimento. O que é mau é o facto deste mercado global, neste momento, ser completamente desregulado relativamente aos interesses sociais. É uma forma de globalização que implica custos sociais muito elevados, um deles é o desemprego. Penso que é uma fase, uma mutação pela qual as sociedades estão a passar. Não há que negar essa globalização, há sim que empreender esforços a vários níveis, desde logo no sentido de uma maior regulação destes mercados globais, fazendo pressão ao nível das organizações internacionais, como sejam a Organização Internacional do Trabalho, a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, etc. São entidades que têm grandes responsabilidades na regulação, ou melhor, na ausência de regulação destes mercados. Há também que fomentar uma maior consciência ética quer dos empresários, quer dos cidadãos. Há exemplos bem conseguidos de empresas que tiveram que modificar os seus produtos e as suas políticas devido às pressões que encontraram nos consumidores e nas suas organizações, como o caso emblemático da Nike. Mas mesmo sem chegar a esses aspectos mais extremos, penso que tudo o que concorra para uma maior responsabilidade ética dos consumidores pode ajudar a constituir um travão na ganância das empresas.
SOLIDARIEDADE – Falamos em comércio justo?
MANUELA SILVA - Sim, mas falamos também nas práticas quotidianas. Precisamos de educar as nossas gerações, sobretudo as mais novas, para um consumo responsável, porque se assim não for nem a vida na Terra é sustentável. A sociedade civil organizada tem que ser um actor mais activo neste campo.
SOLIDARIEDADE – Pertence à Comissão dos Sábios, um organismo da União Europeia, que se encontra a preparar um documento reflexivo sobre os valores éticos no futuro da UE para ser discutido no congresso onde se vão assinalar os 50 Anos da Assinatura do Tratado de Roma (em Março de 2007). A seu entender qual é o papel da Igreja para a definição desses valores?
MANUELA SILVA - Eu julgo que as Igrejas, não só a católica mas todas as Igrejas cristãs, têm um papel muito importante, porque conservam valores que consideramos como universais: o valor da pessoa humana, do bem comum, da liberdade, da solidariedade, da paz, da justiça. São valores que têm as suas raízes na mensagem evangélica, consubstanciados na doutrina social da própria Igreja e que devem passar não só para o pensamento dos cristãos, mas também para as suas práticas e compromissos de vida. As Igrejas têm uma responsabilidade grande, porque, para além deste património de valores, dispõem de uma rede de estruturas que cobrem uma grande parte das populações. Não esqueçamos as comunidades cristãs, as paróquias, os seus encontros regulares, a imprensa eclesiástica, a suas organizações caritativas, etc. A Igreja tem uma rede vastíssima de possibilidades para passar estes valores, discutindo-os, aprofundando-os e sobretudo traduzindo-os em práticas e comportamentos.
SOLIDARIEDADE – As recentes declarações do Papa Bento XVI a respeito da doutrina muçulmana e do Islão, encaradas num mundo em constante convulsão religiosa e política, podem, a seu ver, ter erguido barreiras entre cristãos e muçulmanos, barreiras essas que João Paulo II fez um esforço tão grande para derrubar?
MANUELA SILVA - Como sempre a comunicação social foi à procura das afirmações sensacionalistas e aproveitou essa situação de um discurso académico que, devo confessar, ainda não li na íntegra, mas que abordou variadíssimas questões. Do que infiro da comunicação social é que é uma daquelas situações de infelicidade e motivou uma reacção inesperada e com consequências que ainda não podemos prever inteiramente. O Papa nunca quis ofender os muçulmanos e já o veio dizer publicamente várias vezes. O que podemos fazer neste momento, é aproveitar tudo o que temos ao nosso alcance para reafirmar a nossa posição, enquanto cristãos, de compreensão e de respeito para com a religião muçulmana e os seus profetas. Quero acreditar que tudo não passará de um grande mal entendido sem consequências maiores.
Data de introdução: 2006-10-06