Em Aveiro há uma instituição que toda a gente conhece, pela sua acção em prol dos mais desfavorecidos. Tem um nome curioso – Florinhas do Vouga –, que lhe foi dado, poeticamente, por D. João Evangelista de Lima Vidal, primeiro Bispo da restaurada Diocese de Aveiro. O saudoso prelado já havia criado as Florinhas de Angola, as Florinhas de Rua, em Lisboa, e as Florinhas da Neve, em Vila Real de Trás-os-Montes. As Florinhas nasceran em 6 de Outubro de 1940 e desde então, até hoje, nunca esmoreceu o seu empenho em favor dos mais fragilizados.
Recentemente, chegou-nos às mãos o nº 2 do Boletim Informativo da instituição – Miosótis –, uma flor que reflecte um pouco do muito que as Florinhas do Vouga fazem na cidade, com e para os mais pobres. O seu director, que é também o presidente da instituição, Padre João Gonçalves, diz, em artigo de primeira página, que as Florinhas gostariam de encontrar todos os perdidos da sociedade, "para lhes conquistar a confiança" e para "lhes dar as melhores respostas". Ora aqui estão duas propostas interessantes e pertinentes. De facto, sem a confiança daqueles que queremos ajudar, jamais os poderemos ajudar.
Mais adiante, mesmo no final do artigo, o Padre João lança, a quem o quiser escutar, um grande desafio: "O
canteiro das Florinhas tem a medida do coração! Quem tem coração, venha connosco."
Em entrevista ao SOLIDARIEDADE, o Padre João Gonçalves diz, com ênfase, que “as Florinhas do Vouga são as pessoas que se servem das nossas prestações e da nossa disponibilidade”. Esta instituição nasceu para apoiar crianças em risco, há 66 anos, e nessa altura as Criaditas dos Pobres, vindas de Coimbra, disponibilizaram-se, gratuitamente, para trabalhar com as crianças da rua e suas famílias. Há uns 15 anos deixaram as Florinhas do Vouga, para se dedicarem exclusivamente à sua vocação de ajudar e promover famílias carentes de afecto e do mínimo para sobreviver com dignidade.
Ao longo dos anos, esta IPSS foi-se adaptando às circunstâncias, respondendo “com coração e com muito trabalho” aos problemas sociais que foram surgindo, apostando em estar no meio deles, garantiu-nos o Padre João, que coordena na diocese de Aveiro, também, a Pastoral Social e Caritativa.
Presentemente, não se limita às tradicionais valências, também elas importantes, da Creche, Jardim-de-Infância, ATL, Centro de Dia e Cozinha Social. Voltou-se para as famílias e para a própria comunidade, assumindo a responsabilidade das respostas sociais no problemático Bairro de Santiago, onde residem mais de oito mil pessoas. Mas não fica por aqui, porque exerce uma notável intervenção social em toda a cidade e mesmo na área concelhia.
Fundamentalmente no Bairro de Santiago, porque nele se concentraram famílias oriundas um pouco de toda a parte, nomeadamente das “ilhas e pátios da cidade, de casas em ruína, de ambientes degradados e de famílias desestruturadas, com problemas que se arrastavam há muito”, sublinhou o Padre João, que conhece a cidade, com todos os seus problemas, como as suas próprias mãos.
Esse conhecimento leva-o a frisar que “o grande erro foi concentrar neste bairro toda esta gente cheia de carências, o que potenciou certa marginalidade; não podemos esquecer que vieram também adolescentes e jovens, muitos deles com algumas tendências, como o alcoolismo e a toxicodependência, o que motivou a nossa intervenção urgente, junto das próprias pessoas”. Nessa linha, as Florinhas do Vouga não se preocuparam com a construção de edifícios, optando por ocupar espaços cedidos pela Câmara Municipal de Aveiro e outros que foi alugando ou adquirindo, conforme as necessidades. “Estamos no Bairro de Santiago e não vamos lá fazer coisas, porque entendemos que a Igreja tem de estar onde estão os pobres”, lembrou o Padre João.
O presidente das Florinhas do Vouga realçou o papel do voluntariado, mas não a qualquer preço. Disse que a instituição começou só com voluntários, mas reconhece que hoje há questões sociais que exigem técnicos competentes e empenhados. Mas garantiu que os voluntários não perderam o seu lugar junto das pessoas e famílias carenciadas ou em risco.
Quando o bairro nasceu, a própria paróquia da Glória preparou uma equipa para fazer o acolhimento. “Cada família que chegava era logo ‘entregue’ a um grupo de voluntários que a acompanhava e a ajudava a inserir-se na comunidade, promovendo a ligação aos mais diversos serviços”, disse-nos o nosso entrevistado.
Hoje há muita gente que colabora, a vários níveis, porque, em sua opinião, “as IPSS têm por missão promover o voluntariado”. Nas Florinhas há jovens e adultos que “fazem um óptimo trabalho, tanto no acompanhamento a estudantes, dando explicações, como no Centro de Dia, na Cozinha Social e noutros serviços.
Para apoiar e enquadrar todos os que querem dedicar parte do seu tempo à comunidade, foi criado o Banco do Voluntariado, com pessoas encarregadas de coordenar e dar formação aos voluntários, conforme as suas capacidades e gostos, e tendo em conta as necessidades da instituição e das famílias.
Os voluntários, depois da formação inicial, assinam com a instituição um protocolo, em que são especificados os direitos e obrigações de ambas as partes, onde ficam exarados os horários a cumprir e os serviços a prestar, na linha da gratuitidade e do respeito para com todos.
Defendendo que “o bem tem de ser bem feito”, o Padre João Gonçalves esclareceu que as pessoas carenciadas precisam de alguém que as ajude a encontrar as melhores respostas para as suas inquietações, acrescentando que isso só será possível com técnicos capazes. “Há respostas que só profissionais competentes podem dar”, disse.
O presidente desta IPSS sublinhou a existência de acordos com a Segurança Social e com a Câmara Municipal, neste caso porque as Florinhas estão num bairro problemático, sendo obrigação do município intervir no campo social, em especial no domínio da prevenção. A Junta de Freguesia da Glória também dá a sua ajuda, tal como outras entidades, pessoas e empresas fazem. Destacou, no entanto, a dinamização recente da Liga dos Amigos, que pretende congregar todos os que, directa ou indirectamente, se disponham a ajudar a instituição e os mais feridos da vida.
Como IPSS que não quer parar no tempo, ficando alheia ao mundo que a cerca, as Florinhas continuam atentas aos novos desafios sociais, que passam por um redobrado envolvimento no campo do alcoolismo, da toxicodependência, na promoção das famílias com dificuldades e dos desenraizados. Mas o presidente da direcção logo chamou a atenção para os problemas emergentes no Bairro de Santiago, em especial os que resultam das famílias desfeitas, “sem apoios e com os filhos a caírem na rua”.
Os sem-abrigo, toxicodependentes ou outros, os ex-reclusos e os alcoólicos, que também ficam sem eira nem beira, “que nem as pensões a quem a instituição paga, os aceitam”, são um grande desafio que as Florinhas têm de procurar resolver. “A dificuldade está na falta de financiamentos, que não vêm ou vêm tardiamente das entidades governamentais; esbarramos sempre com a mesma coisa…”, acrescentou o Padre João, que não deixou de se mostrar esperançado em que tudo melhore, para bem da sociedade.
Considera que este trabalho, a que se dedica há muitos anos, é bastante estimulante e comprometedor. Deste modo, “tem oportunidade de ser porta-voz destas carências da sociedade junto dos que podem dar uma ajuda, carências que estão escondidas porque há pessoas que nunca olham para o lado da rua ou para o outro lado da porta; há pessoas que não se cruzam com ninguém. Tudo isto faz com que eu possa exercer a minha vocação de profeta, que denuncia as coisas que estão mal, enquanto anuncia as prováveis respostas”.
Não se pode enterrar a cabeça na areia como a avestruz Não é por acaso que as Florinhas do Vouga estão no coração dos aveirenses. Todos sabem que esta instituição está há quase sete décadas ao lado dos que mais precisam, onde quer que eles se encontrem. Quando o Bairro de Santiago nasceu, um pouco à margem da cidade, as dificuldades sociais brotaram como cogumelos e as Florinhas não ignoraram isso. E lá se instalaram, de armas e bagagens, em salas, garagens e outros espaços, cedidos uns e comprados outros, para responder aos muitos desafios que tantos fingem ignorar, enterrando a cabeça na areia como a avestruz.
Na impossibilidade de visitarmos todas as valências, optámos pelas mais recentes, que traduzem algumas inovações. Durante esta visita às Florinhas, sobretudo olhando para a sua intervenção diária neste bairro, palco de diversos conflitos sociais, provenientes da heterogeneidade da sua população, oriunda um pouco de todos os lados, apreciámos o empenho dos seus profissionais.
Fátima Mendes, assistente social e directora geral da instituição, garantiu ao SOLIDARIEDADE que as Florinhas do Vouga continuam, como desde a primeira hora, a adaptar-se às realidades, estando, por isso, “em constante mutação”. Com as alterações aos horários escolares, esta IPSS estabeleceu acordos com o Agrupamento de Escolas de Aveiro, assumindo, então, actividades extracurriculares, “competindo com as Escolas, no bom sentido”, após os tempos lectivos. Nessa linha, as Florinhas oferecem às crianças música, inglês e actividades físico-desportivas, conseguindo, deste modo, a manutenção das ATL.
A resposta às novas realidades levou, entretanto, à criação de um novo espaço, o Meninarte, para desenvolver acções direccionadas para as crianças da rua que frequentam o 2º Ciclo do Ensino Básico, durante todo o ano, só da parte da tarde, adiantou-nos Fátima Mendes. Há desporto, teatro, dança, tudo com animação em jeito de um clube de portas abertas, com técnicos motivados não só para “atraírem” crianças e jovens, mas também para os despertarem para acções em que possam desenvolver uma socialização sadia.
Laboratório de Saberes é um outro espaço aberto a mulheres desempregadas os inactivas. Num futuro próximo, os homens nessa mesma situação também serão contemplados. Pretende-se que as mulheres, que vão aparecendo espontaneamente ou por convite, sejam dotadas de competências sociais e pessoais, através de actividades recreativas, mas ainda de trabalhos manuais e de participação em tarefas comunitárias. Tudo para que consigam posteriormente “organizar-se sem a nossa retaguarda”, sublinhou a directora geral das Florinhas.
“Começámos com este espaço, levando as mulheres a compreender que elas não vinham só para aprender, mas ainda para nos ajudarem em muitas tarefas; avançámos com a reciclagem do papel, divisão de lixos; aproveitámos material reciclável para a confecção de objectos úteis; e até vendemos os trabalhos que as utentes vão fazendo”, adiantou ao SOLIDARIEDADE a directora.
Todas as valências das Florinhas do Vouga são apoiadas pela Equipa de Intervenção Directa. Motiva os toxicodependentes para os tratamentos específicos, alguns dos quais são arrumadores nos parques de estacionamento da cidade, “num trabalho permanente de rua”, acompanha as suas famílias e estabelece a ligação de todos aos departamentos de apoio e de reinserção social e profissional, garantiram-nos Mariana Serra e Sandra Marques, psicóloga e assistente social, respectivamente.
Porque as acções sociais exigem actualização e adaptação contínuas, a instituição não descura a procura e o lançamento de novos projectos, no sentido de alargar os seus horizontes, para melhor servir a comunidade. Assim, está em elaboração um projecto para apoiar as famílias mais vulneráveis e em risco, “uma realidade bem visível no Bairro de Santiago”, destinado a famílias de toxicodependentes, vítimas de maus-tratos e de violência familiar, negligência e outras carências.
De inovador, tem o facto de haver um espaço que funcionará das 18 às 23 horas, para implementar acções destinadas a pais e filhos, em conjunto se possível, de forma a fomentar o diálogo e a criar boas relações entre eles.
No bairro há ainda uma Cozinha Social, um grande sonho do Padre João Gonçalves. Para ele canalizou uma oferta da paróquia para um carro novo, que não quis comprar, quando completou 25 anos de presbítero, há cerca de 12 anos. A Cozinha fornece almoços e jantares durante 365 dias por ano, a preços simbólicos para quem pode pagar, e gratuitos para todos os outros.
A procura, cada vez maior, obrigou a uma ampliação, “para se oferecer um serviço com maior dignidade, até porque havia pessoas que ficavam à espera ao vento e à chuva”, lembrou Fátima Mendes. Claro que este serviço só pode funcionar graças ao apoio do Banco Alimentar Contra a Fome e às ofertas, frequentes, de agricultores, indústria alimentar e Segurança Social, entre outras pessoas e entidades.
Na primeira foto: Bairro de Santiago
* Texto e fotos
(
rochamartins@portugalmail.pt)
http://pela-positiva.blogspot.com/
Data de introdução: 2007-02-07