CENTRO JUVENIL DE CAMPANHÃ, PORTO

Quando for grande eu quero ser...

“Quero ser actor para entrar em telenovelas”... “Eu quero ser médico para ajudar as pessoas”... “Quero ser maquinista, sei tudo sobre comboios...”
Estes são alguns dos sonhos dos meninos que cresceram longe da família, ou que, muitas vezes, nem a conheceram, pois as contingências obrigaram a que fossem entregues aos cuidados de terceiros. O mais novo da casa tem três anos, é o benjamim. O mais velho conta com 27 anos, bem mais do que a idade estipulada para permanência na instituição, os 18 anos. “Os rapazes não se vão embora por terem atingido o limite de idade, mas sim quando têm asas para voar”, explica-nos o director do Centro Juvenil de Campanhã, Fausto Ferreira.

Situado por detrás da estação de comboios de Campanhã, o edifício ergue-se imponente sobre o rio Douro e apesar de ser um dia chuvoso de Inverno, a casa estava animada. Na portaria, um grupo de adolescentes tagarelava, enquanto o porteiro baixava a janela do programa de computador para nos atender. “O Sr. Director, é só um momento” – diz-nos, enquanto pega no telefone e avisa alguém da nossa chegada. O edifício antigo, lembrando uma velha casa senhorial, perde-se entre varandas, portas e escadas e nada demonstra a natureza daquele lugar. Na verdade assemelha-se a um colégio qualquer, com o rebuliço normal de um dia de aulas.
Fausto Ferreira é director da instituição desde 1995 e levou-nos a visitar a casa. O Centro integra as valências de lar para crianças e jovens, centro de acolhimento temporário (CAT) e unidade de emergência infantil. Além disso, também possui uma creche e um jardim-de-infância. Acolhe 94 rapazes no Porto e mais 40 meninos no recente pólo de Vila do Conde. Na instituição trabalham diariamente 83 pessoas, desde a equipa técnica até ao pessoal auxiliar.

A história do Centro começa a 29 de Março de 1809, quando o exército Francês, sob o comando do Marechal Soult, invadiu pela segunda vez o País e chegou ao Porto. A debandada da população aflita levou à tragédia da Ponte das Barcas, em que milhares de portuenses ficaram sepultados nas águas do Douro. Para recolher as crianças que perderam os pais nessa tragédia, o Padre José de Oliveira fundou, oficialmente a 6 de Janeiro de 1814, o Seminário dos Meninos Desamparados, actualmente, Centro Juvenil da Campanhã. Esta IPSS destina-se a acolher crianças e jovens do sexo masculino, entre os seis e os dezoito anos, que estejam abandonados, em situação de perigo ou entregues a si próprios.

director do Centro Juvenil de Campanhã, Fausto Ferreira.No início deste ano, em Janeiro, foi inaugurado um pólo em Vila do Conde, um desejo antigo e que, por falta de apoios governamentais, só agora foi possível concretizar. “Construímos um edifício de raiz que custou cerca de um milhão e meio de euros”, explica o director da instituição. “O Estado apenas comparticipou com um terço da verba, numa obra inscrita em PIDDAC (Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central), mas para a qual o Governo anterior deixou-nos dois anos sem qualquer resposta”, lamenta Fausto Ferreira. Tal como muitas instituições de solidariedade, co-financiar em 35 por cento um orçamento na ordem dos dois milhões de euros não é uma tarefa fácil. O director defende que as IPSS devem ter fontes alternativas de receitas que lhes permitam canalizar verbas para a sua missão principal. “Se assim não for, seremos uns eternos pedintes diários”, afirma. “Não creio que isso seja muito dignificante, mas também não vejo, a curto prazo, forma de se alterar esse cenário”, conclui Fausto Ferreira.

Após a visita ao edifício principal, onde estão os serviços administrativos, o bar, a cantina, a capela e, no andar superior, a creche e o jardim-de-infância passamos à Casa dos Rapazes. Atravessámos um pátio onde várias crianças brincavam num campo de basquetebol e outras entretinham-se por aqui e acolá, num espaço amplo e com vista de postal. A acompanhar-nos seguia um puto com cerca de nove anos interessado na máquina fotográfica, ansioso por entrar na conversa. Nas traseiras, com acesso directo à rua, funciona a Escola Profissional, uma cooperativa participada pelo Centro Juvenil, com cursos na área da informática, do turismo, da comunicação e do marketing. “Os nossos rapazes que pretendem integrar a escola são livres de o fazer, mas não é obrigatório”, explica o director.

Neste momento, apenas dois rapazes a frequentam, embora esse número já tenha ultrapassado a dezena. Duarte é um deles. Tem 16 anos e frequenta o curso de Informática e Gestão, de nível III. Vive em centros de acolhimento desde os seis anos de idade, mas este foi o que mais gostou. “Vim para aqui, porque tinha cá mais dois irmãos e é o melhor sítio onde estive”, conta-nos descontraidamente. O dia-a-dia é passado entre a escola, as brincadeiras e as obrigações. “Somos uma família muito heterogénia e muito grande”, diz Fausto Ferreira. “Se já é complicado gerir uma família de quatro ou cinco elementos, muito mais é gerir uma desta dimensão”, afirma sorrindo. Na Casa dos Rapazes, a separação é feita por idades e pisos. No rés-do-chão dormem os mais pequenos, sempre acompanhados por um educador. À medida que o edifício cresce em altura, também aumentam as idades dos jovens. No topo, ficam os quartos individuais dos mais velhos, muitos já trabalhadores, outros ainda estudantes. Estes têm “porta aberta” ao fim-de-semana e, para aqueles que não trabalham, está reservada uma pequena mesada mensal para poderem ir ao cinema e sair com os amigos. O bom comportamento e bons resultados na escola são a moeda de troca. Duarte confirma-nos essa teoria. “Dão-nos liberdade na mesma proporção do nosso bom comportamento cá”, explica o jovem, que considera o ambiente na casa “espectacular”. “Aqui criam-se laços que lá fora é muito mais difícil criar”, assegura-nos.

Apesar do bom ambiente, as dificuldades em lidar com crianças e jovens considerados problemáticos são diárias. A institucionalização é sempre o último recurso, mas quanto mais tarde chegam às IPSS mais difícil é moldar-lhes o comportamento, como explica o director do Centro: “Concordo que a institucionalização seja a última opção a ser tomada, mas não pode ser alternativa dez anos depois de se diagnosticar os problemas, como vem acontecendo”, diz Fausto Ferreira. Nos últimos seis anos, o Centro Juvenil da Campanhã tem recebido essencialmente pedidos para acolhimento de adolescentes entre os 15 e os 16 anos. “Estamos a falar de jovens que, geralmente, andam no sexto ano de escolaridade e com os quais dificilmente conseguiremos fazer o que fazemos com as crianças que entram mais cedo”, diz o director. Nos últimos 12 anos, seis rapazes da instituição tiraram um curso superior, cerca de 20 concluíram um curso técnico-profissional e três frequentam actualmente a faculdade, números que revelam um grande esforço por parte de toda a equipa que gere o Centro. “Todos eles foram rapazes que acompanhamos desde cedo”, explica Fausto Ferreira. “O problema das crianças em risco resolve-se a montante, mas o sistema teima em resolver quando já têm 15 ou 16 anos”, lamenta. Outra das questões complicadas, segundo o responsável, deve-se ao facto de serem encaminhados para as IPSS crianças e jovens com perturbações psiquiátricas, o que está muito para além das competências de quem os acolhe. “Fazemos o que podemos, mas as instituições não têm vocação nem meios técnicos para resolver esses casos”, diz o director. Para aquele responsável, que há cerca de um ano atrás se viu confrontado com o envolvimento de um menor daquele Centro, num acto criminoso, as razões psiquiátricas podem estar na base de acontecimentos dramáticos. “Custa-me a hipocrisia da sociedade”, desabafa Fausto Ferreira. “Estamos a falar de todo um percurso de falhas e erros, desde a família, à comunidade, à escola, às entidades oficiais que tomam conhecimento das situações, mas que agem muito tardiamente e só no fim da linha é que o jovem é enviado para uma instituição”, aponta o dedo o director. O trabalho da equipa técnica, constituída por psicólogos, médicos, professores e enfermeiros, é tentar canalizar todas essas frustrações e força que cada jovem carrega para o “bem”. “Tentamos fazer com que eles percebam que estamos aqui para ajudá-los, mas não podemos ajudar quem não quer”, diz o director. “Somos uma instituição muito grande, com uma equipa pluridisciplinar, mas fazemos o que podemos”, sublinha Fausto Ferreira.

Dos jovens que permanecem mais de cinco anos na instituição cerca de 90 por cento consegue seguir um projecto de vida, mas não é assim para todos. “Alguns entram e saem e outros nem chegam a entrar porque quando a técnica os traz, saltam logo o muro”, lamenta Fausto Ferreira que considera aqueles meninos como sobrinhos. “São como se fossem nossos sobrinhos, caem-nos no colo e isso pode acontecer a qualquer pessoa”, explica. Como exemplo, o responsável refere a época natalícia, uma altura do ano complicada para algumas das crianças que não têm para onde ir. “Este Natal ficaram cerca de 20 meninos no Centro e nós levamo-los para nossas casas”, diz o director.

Combatendo terminantemente a ideia de Centro Educativo, Fausto Ferreira garante que a flexibilidade é uma constante na casa. “Não somos uma instituição formal, cheia de regras”, explica. “Nem sempre a mesma regra serve para todos e sempre que possível somos flexíveis para que eles se sintam felizes”.
Filinto Correia viveu 10 anos no Centro. Agora trabalha na instituição como auxiliar de acção educativa. Para o jovem, com 26 anos, o Centro foi a “sua casa”. “Passava mais tempo aqui do que na minha própria casa”, diz-nos, enquanto vai atendendo os telefonemas. “Agora venho cá trabalhar, mas às vezes, aos fins-de-semana, quando estou sozinho, venho para cá”, confessa. O contacto com as famílias é mantido, sempre devidamente acompanhado pela equipa técnica, mas para muitos jovens o Centro representa o conceito de lar. “Aqui é que gosto de estar”, diz-nos o Duarte. “Pratico desporto, tenho aulas de capoeira, futebol, equitação. Sinto-me bem”, conclui. “Nós tentamos compensar da melhor forma a falta da família. Eu próprio costumo levar para casa alguns dos mais pequeninos, já que são próximos da idade do meu filho”, diz o director.
Projectos para o futuro não faltam, faltam sim os apoios necessários para concretizá-los. “Pretendemos avançar para uma valência na terceira idade, os estatutos foram alterados de forma a permiti-lo”, adianta Fausto Ferreira. “Também estamos em negociações com a Câmara Municipal de Gaia para a cedência de um espaço que poderá ser para um lar de raparigas”, diz o responsável que deixa escapar uma crítica severa à autarquia portuense. “Nestes últimos cinco anos nunca recebemos a visita do Presidente da Câmara do Porto, embora o tenhamos convidado para inúmeras iniciativas. Nem nenhum apoio, apesar de repetidamente o termos pedido”, afirma Fausto Ferreira.

Alheios a estas problemáticas os meninos e os jovens do Centro Juvenil da Campanhã vão crescendo e sonhando com futuros mais risonhos. Das janelas dos quartos do lugar a que chama “casa”, os olhares cintilam e deambulam, ora pairando sobre o rio que corre incansavelmente em direcção à foz, ora debruçando-se sobre os comboios que chegam e partem continuamente na estação da Campanhã.

 

Data de introdução: 2007-03-09



















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