Um dia a magia desceu sobre a cidade de Lisboa - já lá vão mais de 25 anos - e na encosta sul do Castelo de S. Jorge, abraçando o rio com o olhar, fez nascer como que por encanto, uma realidade de sonho que perdura no tempo e no espaço e à qual deram o nome de Chapitô. Não fosse esta uma reportagem real, poder-nos-íamos embrenhar por viagens maravilhosas ao mundo da fantasia, que os contos traduzem em palavras e que a imaginação dos pequenos e dos grandes dota de asas para que possam voar.
Montado - não fosse este projecto um hino às artes circenses e cuja tenda central domina o espaço - na Costa do Castelo, logo por cima do bairro da Alfama, morada do Fado, o Chapitô-sede ocupa um espaço mítico da cidade, onde outrora se situava a célebre Torre da Alfofa, entrada popular e circense da cidade medieval. Ali próximo encontramos o Teatro Romano, a Sé, as ruínas da Mesquita, as muralhas… Pelas ruas esguias, íngremes, calcetadas, com as fachadas das casas caiadas a branco sujo, mas que o sol do início da tarde torna resplandecentes, chegamos ao número 1 da Costa do Castelo. A porta pintada de azul abriu-se e entramos num conceito diferente, inovador, em que o cultural se alia ao social, numa dança de esperança e de novas oportunidades.
“O Chapitô é um mundo, é uma casa suficientemente grande para nos abraçar a todos na solidariedade da festa e suficientemente pequena para receber a criança que cada um tem dentro de si”, foi assim que Teresa Ricou, presidente da instituição e mentora do projecto o definiu. A Instituição/ Projecto, que comemorou 25 anos de idade em 2006, é fruto de uma história complexa, que se inscreve no quadro dos movimentos artísticos dos anos 70. A animação, as “artes circenses”, o espectáculo popular efémero e performativo e a intervenção sócio-cultural foram algumas das acções desenvolvidas na década de 70 por Teresa Ricou, ou melhor, pela personagem por ela criada, a palhaça “Tété”.
Enquanto entidade formal, o Chapitô surge em 1981, com a escritura da Colectividade Cultural e Recreativa de Santa Catarina, entidade que lhe deu suporte. A criação da Escola de Circo Mariano Franco, em homenagem ao bailarino de sapateado e companheiro de “Tété”, no Bairro Alto, foi o embrião do que é hoje a Escola de Artes e Ofícios do Espectáculo, um dos grandes pilares formativos da instituição. A experiência foi-se acumulando e aprofundando no contacto com as populações mais carenciadas e dos bairros periféricos de Lisboa. A convite do Ministério da Justiça, o Chapitô começou a desenvolver um trabalho de animação junto dos menores do actual Centro de Reinserção da Bela Vista (ex-COAS), trabalho esse que se foi instituindo e incorporando como “eixo fundador” do projecto e que, em 1999, foi alargado ao Centro Educativo Navarro de Paiva. Um conjunto de animadores desloca-se aos centros e aí desenvolvem com as crianças e jovens tutelados actividades lúdicas e artísticas, em variadíssimos ateliers: teatro, música, histórias, “faz-tudo”, etc…
Na sequência desse trabalho surge, mais tarde, a Casa do Castelo, um espaço que acolhe jovens com mais de 18 anos, saídos dos centros educativos e com grandes necessidades de apoio. Luísa Matos, coordenadora dos serviços de Acção Social da instituição, explica que os rapazes vêm encaminhados pelos centros educativos e que a selecção é feita com base na necessidade. “Recebemos aqueles que têm falta dos recursos quase todos, ou seja, não têm qualquer experiência profissional, não têm apoio familiar, são órfãos ou de famílias disfuncionais e não têm qualquer capacidade económica para se sustentarem e construírem um projecto de vida”, elucida Luísa Matos. A Casa do Castelo tem capacidade para seis jovens, que residem com um técnico/educador, num espaço acolhedor e familiar, onde a partilha de tarefas e responsabilidades é uma constante. “Nós ajudámos na construção do projecto de vida de cada um, um projecto que abrange a formação, o apoio psicológico e jurídico e a inserção numa actividade profissional ou ocupacional”, explica a técnica.
O tempo de permanência na Casa do Castelo varia muito, dependendo sempre do grau de autonomização que cada um consegue atingir, ultrapassando sempre um ano. “A população com a qual trabalhamos é muito difícil, com graves dificuldades de inserção e grande falta de competências, são equilíbrios muito frágeis”, diz Luísa Matos. Para além deste centro de acolhimento, o Chapitô também disponibiliza apoio psicológico a 27 jovens em início de vida, que residem no exterior da instituição, mas cujas despesas são por ela suportadas. “Tentamos ir sempre ao encontro do sonho de cada pessoa”, garante Luísa Matos e dá dois exemplos: “tivemos um rapaz que sonhava ser cozinheiro e agora está numa escola a aprender essa arte e um outro que tinha uma paixão muito grande por cavalos e nós inserimo-lo na Sociedade Hípica, onde está a aprender a ser tratador”, afirma orgulhosa a assistente social.
Num projecto de cruzamentos, enquanto associação cultural sem fins lucrativos, ao longo dos tempos, a Casa foi-se convertendo em parceiro social, integrando múltiplas redes, tendo estabelecido diversos protocolos com entidades oficiais e privadas, ao nível nacional e internacional. Adquiriu formalmente vários estatutos de utilidade pública, nomeadamente de IPSS (instituição particular de solidariedade social) e de ONG (organização não governamental, integrando a plataforma portuguesa). “O Chapitô é um espaço aberto ao público, um projecto cultural de um pensamento que ultrapassa a acção artística pura e simples e que tem uma vertente social muito grande”, diz-nos a presidente da instituição, Teresa Ricou.
Pelo labirinto de escadas em caracol, por detrás de cada porta de madeira que se abre com um rugido de velho e misterioso, há um mundo de fantasia por descobrir. Aqui, tudo é pensado ao pormenor e todo o espaço está cuidadosamente preparado para acolher uma diversidade de actividades. Na tenda principal, decorria uma aula de preparação física da Escola Profissional de Artes e Ofícios. Os alunos, indiferentes à nossa presença, preocupavam-se em fazer os triplos mortais e as cambalhotas de trás para a frente, sonhando um dia voar em trapézios e encarnar figuras do mundo do espectáculo, que distribuem pequenos pedaços de sonho com as mãos. A área da formação/educação do Chapitô tem uma singularidade: as técnicas circenses são o centro da aprendizagem física, artística, cultural e plástica dos cursos de Artes e de Ofícios do Espectáculo.
A Escola assume-se como um laboratório de explorações, num entrecruzamento plástico, técnico e poético do corpo, da palavra e do objecto. “Temos a nossa área do espectáculo, para onde saem os nossos jovens formados aqui no Chapitô, onde criamos uma companhia de teatro mais virada para o teatro físico e do gesto, que está neste momento em tournée por Espanha, com ex-alunos e profissionais”, diz Teresa Ricou. É das receitas desses espectáculos comerciais, que a instituição suporta muitas das despesas da parte social e cultural. “Vivemos duma economia social”, explica a directora, “enquanto prestadores de um serviço público, temos subsídios do Estado, nas áreas da educação, da cultura, das artes e da segurança social, mas fazemos espectáculos comerciais e ganhámos dinheiro, que depois suporta a outras áreas”, e acrescenta que considera que a esse nível é “um projecto modelo”. Teresa Ricou não gosta de classificar este espaço pioneiro no panorama nacional como uma “escola de elite”. “Não somos uma escola de elite, nem fazemos cultura de elite, mas formamos jovens de elite”, esclarece a mentora e relembra alguns nomes de antigos alunos que singraram no mundo do espectáculo, inclusive no estrangeiro, para onde, muitos, depois, prosseguem os estudos. Refira-se que a Companhia do Chapitô foi criada em 1996 e que desde a sua formação já produziu mais de duas dezenas de criações originais apresentadas quer em Portugal, quer no estrangeiro, em países da Europa, América do Sul e do Oriente.
Seguiu-se a visita à singular biblioteca Luísa Neto Jorge, onde, uma vez mais, o espaço nos surpreende pelo atrevimento da decoração, cuja “piscina” de almofadas e colchões de “reflexão” ocupa uma posição privilegiada. Local ideal para debates, tertúlias e encontros, a biblioteca possui um arquivo e bibliografia rara sobre o mundo do espectáculo e do circo. Indiscretamente, interrompemos uma aula que lá decorria, porque no Chapitô todos os espaços são usados como lugar de formação e criação, numa polivalência e interdisciplinaridade constante. Deixámos a biblioteca e fomos conhecer o CAAPI, Centro de Acolhimento e Animação para a Infância - João dos Santos. Aqui, entrámos pela cancela em miniatura e a casinha da árvore captou de imediato a nossa atenção. Este espaço, dedicado às crianças dos 8 meses aos 12 anos, recebe em horário livre, os meninos da comunidade envolvente, propondo-lhes actividades de expressão dramática, plástica, animação circense, capoeira, magia, jardinagem, entre outras. Uma banheira em ponto grande, um baú de brinquedos e tantos disfarces e uma casa que nasce num tronco de uma árvore tiram-nos da realidade envolvente e fazem-nos esquecer que estamos em pleno trama urbano da capital portuguesa. Finalmente, regressamos ao pátio principal e sentamo-nos calmamente na esplanada do Restô, o restaurante/bar de onde se desfruta de uma vista quase que “pintada” da cidade de Lisboa, num casario que se estende até às margens do Tejo.
Alguns jovens entretêm-se a fazer malabarismos em frente à tenda de espectáculos, ao som de uma música peculiar. Se houvesse pós de perlimpimpim e se ainda fosse tempo de falar em magias, dir-se-ia que nesta casa sente-se uma atmosfera especial no ar. O brilho dos olhares de sonho de cada jovem, esconde-se por detrás das máscaras e fantasias, das piruetas e dos espelhos, do trapézio e das bolas gigantes ou piscinas de leitura que fazem do Chapitô um “condado”, como descreve Teresa Ricou. “Somos uma espécie de condado, o condado Chapitô. Somos um grupo de guerrilha cultural, social e da formação”, afirma a mulher-palhaço que um dia resolveu usar a arte para mudar um bocadinho do mundo.
Brevemente, a instituição vai passar a dispor de mais um local para apresentar os seus espectáculos, uma sala com capacidade para cerca de 400 a 500 pessoas. “Temos em vista abrir um novo grande espaço em Santos, em conjunto com vários artistas”, adiantou Teresa Ricou. “Será um espaço polivalente, com um núcleo museológico, um local dedicado à música, aos livros, uma Escola de Rock e com muita actividade cultural”, explicou. Apesar de reafirmar continuamente que o Chapitô “não quer crescer muito mais”, lá vai dizendo que “quer poder dar mais um bocadinho de oportunidades”. Tendo a arte como força motriz de transformação do mundo, “Tété” persiste numa instituição que é um contínuo projecto em evolução, ou uma obra constantemente inacabada e sempre inconformada com a realidade que a rodeia. “Trabalho entre micro e macro, na justa medida das capacidades de cada um, para mim não há impossíveis”, afirma a eterna mulher-palhaço, enquanto se afasta já vestida com alguma indumentária de caracterização.
Data de introdução: 2007-04-03