“Com vossa licença, o porco acaba de entrar neste relato e será a personagem principal.” Assim começa o segundo capítulo do livro “Outros Tempos” do escritor baionense António Mota. Histórias de um mundo rural cada vez mais perdido na memória colectiva das gerações actuais marcam o fio condutor desta obra. E foram essas tradições que constituíram o mote para a viagem no tempo que o Centro de Convívio e Apoio à Juventude e Idosos de Santa Leocádia (CECAJUVI), no concelho de Baião, proporcionou aos seus utentes, no passado dia 10 de Março. A propósito da apresentação do livro, a direcção da instituição particular de solidariedade social organizou um conjunto de actividades alusivas a um dos momentos mais emblemáticos da obra: a matança do porco.
Os preparos começaram cedo, tal como manda a tradição. Não faltaram mãos para ajudar, pois, sem o auxílio de apetrechos modernos, é preciso muita força de braços para levar a cabo tão árdua tarefa, que durante muitas décadas constituiu um dos principais momentos na vida das famílias. O animal foi trazido bem preso por uma corda e à sua espera já estava o carro de bois, com os respectivos estadulhos, quatro de cada lado, para prender o porco. O matador, tal qual maestro, dirigia a orquestra de homens que, visivelmente satisfeitos com o momento, davam cada um a sua opinião sobre a forma mais correcta de fazer os preparos. As panelas de ferro de três pés já estavam ao lume, numa cozinha regional improvisada e a broa de milho também já levedava. Algumas senhoras quiseram potenciar ainda mais este regresso às origens e optaram por trazer nos pés os antigos socos de verniz preto que, apesar de não serem muito confortáveis, era o que se usava antigamente.
A azáfama continuava grande, enquanto o sol se erguia cada vez mais no céu. Curiosos vinham ver o que por ali se passava, embora, para muitas daquelas pessoas, o assunto não constituísse novidade, já que ainda se pratica a matança do porco de forma tradicional em muitas terras do interior do país.
“(…) Aproxima-se o momento crucial, por isso não se ouve senão os gritos incomodativos do porco. O matador dá uma palmada no local onde rapou os pêlos e, de repente, com toda a força do seu braço, espeta a faca no corpo do bicho (…)” e assim se cumpriu tal como vem descrito no livro. O sangue jorrou para dentro de um alguidar de barro que é entregue de imediato à cozinheira, que o corta e mete na panela de ferro com água a ferver. E claro que a senhora, habituada a estes andares, não se esquece de pôr por cima, dois paus de loureiro cruzado e sem folhas, porque se diz que ajudam a que o conteúdo não transborde. O ritual continua, regado com vinho directamente saído do pipo, que agora está pousado no carro de bois. Os preparos do animal avançam, pois a carne será usada para o lanche-convívio previsto para a parte da tarde.
Após o almoço, chegou a hora de conhecer a obra que serviu para proporcionar aquele encontro. “Outros Tempos” lançaram António Mota na literatura para adultos, um livro que foi escrito ao longo de mais de uma década, como explicou o escritor. “Nasci, cresci e vivo numa zona ainda rural, não precisei de ir pesquisar para escrever sobre aldeias, porque tenho conhecimento próprio e memórias desse tempo”, afirmou o escritor.
Natural de Ovil, no concelho de Baião, António Mota é professor do primeiro ciclo, sendo actualmente um dos autores portugueses mais lido e mais premiado da literatura infanto-juvenil, com mais de cinco dezenas de títulos publicados. Victor Pinto, presidente da direcção do CECAJUVI, explicou ao Solidariedade que esta foi uma forma de lembrar e recuperar uma memória colectiva dos utentes do centro. “Fizemos uma viagem à memória e à vida dos nossos utentes, pois este livro fala deles e das coisas que eles faziam e do modo como as faziam”, disse o presidente da instituição.
Os originais que deram origem às ilustrações do livro, da autoria de Marta Lemos, também natural de Baião, foram motivo de uma exposição/venda no Centro. Os desenhos, aguarelas e pinturas a óleo de muitos dos momentos que povoam a tradição popular descrita na obra, estiveram expostos nas paredes da sala de visitas do CECAJUVI, advindo uma percentagem da sua venda para a instituição, que atravessa alguns constrangimentos financeiros, com o fecho da valência de ATL.
Após a apresentação de “Outros Tempos” houve ainda tempo para um lanche-convívio, onde foram servidas as iguarias do porco. Apesar de não saber ler, Francina Ribeiro, de 80 anos, explica que gostou muito daquele dia. “Já o meu pai matava assim o porco e eu, ainda mocita, ajudava”, diz-nos, enquanto prova as febras acabadas de vir da brasa. Francina não sabe ler e nunca foi à escola, mas confessa que gostava que alguém que lhe lesse o livro “do senhor Mota”. Já António Vieira, de 76 anos, sabe ler e até comprou um dos livros. “Eu ainda não o li, mas como fala do tempo antigo deve ser bonito”, diz. “Ainda mato o meu porquinho em casa e esta manhã ajudei a matar este porco daqui”, afirma orgulhoso, enquanto nos mostra o livro que comprou, devidamente autografado pelo autor.
O CECAJUVI é actualmente a sala de visitas da localidade onde está inserido, Santa Leocádia. A IPSS, criada em 1998, desenvolve as valências de centro de dia e apoio domiciliário, servindo cerca de 80 utentes não só da freguesia onde está localizada, mas também das freguesias limítrofes.
Data de introdução: 2007-04-04