Das poucas recordações que tenho do “antes do 25 de Abril de 1974” emerge um episódio caricato revelador do poder discricionário que alguns agentes da administração pública tinham nessa altura. Um presidente da junta, numa aldeia do interior onde a minha família vivia, chamou a GNR porque a minha mãe deixou cair a filha do ilustre senhor. Veio a GNR, de imediato, e lembro-me da minha mãe, em lágrimas, a explicar o sucedido enquanto os militares registavam a ocorrência. O caso não chegou mais longe porque a filha do regedor, com quem eu costumava brincar, nem nódoas negras apresentava como provas de incúria ou mau trato.
Nos tempos que correm, nesta adolescente democracia portuguesa, o mais comum é o contrário: mesmo alguns acontecimentos graves e atentados à ordem pública e à segurança são tratados com desdém, desconsideração e ausência pelas autoridades policiais. Chama-se a polícia e ela ou não chega ou vem tarde, a más horas e somente regista a ocorrência.
Por isso, é estranho o que se passou, em menos de uma semana, em Torres Vedras e em Braga. Na véspera do Carnaval de Torres Vedras um fax, considerado muito urgente, da procuradora-adjunta do Ministério Público ordenava: “remoção do conteúdo do computador Magalhães que se encontra exposto frente ao Hotel Império até às 15h30”. O crime era a imagem resultante de uma pesquisa do motor de busca Google com a palavra-chave “mulheres” exposta no écran do célebre portátil.
Em Braga, a PSP apreendeu numa feira de livros de saldo exemplares de uma edição sobre pintura de Catherine Breillat que tinha na capa o título “Pornocracia” e a reprodução do célebre quadro “A Origem do Mundo”, do pintor oitocentista Gustave Courbet – tido como fundador do realismo na pintura. O quadro representa as coxas e o sexo de uma mulher, foi pintado em 1866, e está exposto em Paris. Os três agentes da PSP apreenderam os quatro livros, elaboraram um auto por terem imagens pornográficas e estarem expostos publicamente. Ambos os casos tiveram desfechos semelhantes. Os livros foram devolvidos e o computador Magalhães com as imagens de mulheres foi cabeça de cartaz no Carnaval, tendo contribuído, segundo rezam as crónicas, para uma maior afluência a Torres Vedras.
Os constitucionalistas, os estetas e os sociólogos já escalpelizaram profundamente os possíveis significados destas precipitadas censuras. Todos consideram que se pode estar perante um sinal de regresso ao passado em matéria de liberdade de expressão.
Falta, talvez, a explicação mais terra-a-terra e casuística. Estou inclinado a admitir que foram gestos, decisões e ordens isoladas de gente encarcerada em gabinetes, sem tempo para ler livros, ver filmes, visitar museus ou ir a exposições. Gente que não sabe a diferença entre arte e pornografia.
O que me intriga é a associação que o meu cérebro fez entre estas risíveis ocorrências policiais e a recordação dolorosa da humilde reacção da minha mãe perante a prepotência do regedor.
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