EDITORIAL

Caridade na Verdade

1. “Na época da globalização, a actividade económica não pode prescindir da gratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justiça e o bem comum em seus diversos sujeitos e actores. Trata-se, em última análise, de uma forma concreta e profunda de democracia económica. A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos e, por conseguinte, não pode ser delegada só no Estado. Se, no passado, era possível pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justiça e que a gratuidade intervinha depois como um complemento, hoje é preciso afirmar que, sem a gratuidade, não se consegue sequer realizar a justiça. Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possam operar, livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder-se radicar e exprimir as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e sociais. Do seu recíproco confronto no mercado, pode-se esperar uma espécie de hibridização dos comportamentos de empresa e, consequentemente, uma atenção sensível à civilização da economia. Neste caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo”.

“Quando a lógica do mercado e a do Estado se põem de acordo entre si para continuar no monopólio dos respectivos âmbitos de influência, com o passar do tempo definha a solidariedade nas relações entre os cidadãos, a participação e a adesão, o serviço gratuito, que são realidades diversas do «dar para ter», próprio da lógica da transacção, e do «dar por dever», próprio da lógica dos comportamentos públicos impostos por lei do Estado. A vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se actue não só sobre a melhoria das transacções fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de actividade económica caracterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão. O binómio exclusivo mercado/Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas económicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal como não se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tanto o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco”. (Bento XVI - Caritas in Veritate)

2. Aguardada com grande expectativa, a encíclica “Caritas in Veritate” (a Caridade na Verdade), surgida no fim de Junho último, é um pronunciamento da Igreja que aparece no momento oportuno para ser uma espécie de código orientador não apenas para sair da crise mas para engendrar uma outra aurora para a humanidade.
Defende uma nova ordem política e financeira internacional, para governar a globalização e superar a crise em que o mundo se encontra mergulhado e apresenta como prioridade a “reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional”, sentida em especial “perante o crescimento incessante da interdependência mundial”, e diz que esta “verdadeira Autoridade política mundial” teria como objectivos prioritários “o governo da economia mundial”, o desarmamento, “a segurança alimentar e a paz”, a defesa do ambiente e as regulações dos fluxos migratórios. Outra necessidade apontada é a de ajudar “as economias atingidas pela crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e, em consequência, maiores desequilíbrios”.

Bento XVI considera que os “princípios tradicionais da ética social”, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, continuam a ter lugar nos dias de hoje para enfrentar “problemáticas do desenvolvimento neste tempo de globalização”, em especial perante a crise económico-financeira e considera que todo o sistema financeiro “deve ser orientado para dar apoio a um verdadeiro desenvolvimento”. “Há que considerar errada a visão de quantos pensam que a economia de mercado tenha estruturalmente necessidade duma certa quota de pobreza e subdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo”, alerta.
Neste sentido, apela a uma regulamentação do sector capaz de impedir “especulações escandalosas”, referindo que à luz da actual crise fica claro que “o progresso económico se revela fictício e danoso quando se abandona aos «prodígios» das finanças para apoiar incrementos artificiais e consumistas”.
O documento indica que “também nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal”.
No mesmo sentido, recorda que “o objectivo exclusivo de lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir riqueza e criar pobreza”. “A economia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento; não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa”, frisa o Papa.
Neste contexto, diz Bento XVI, “eliminar a fome no mundo tornou-se também um objectivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra”.

3. Ao longo da sua história, e sobretudo nos últimos 100 anos, a Igreja Católica não se absteve de se pronunciar oportunamente sobre os problemas da sociedade, tendo consciência de que o homem é convidado antes de tudo, a descobrir-se como ser transcendente, em qualquer dimensão da vida, inclusive a que se liga aos contextos sociais, económicos e políticos.
Quando na prática política parece faltar pensamento e nos objectivos estratégicos parece faltarem ideias, impõe-se reflectir sobre a encíclica Caritas in Veritate que surge como singular contributo da Igreja. No mundo e para o mundo.
Também entre nós, que fomos sendo constituídos como povo à sombra da Igreja e em que a acção social de iniciativa da Igreja ou nela inspirada tem uma dimensão tão forte que lhe dá a suficiente credibilidade para impor uma reflexão que urge.

 

Data de introdução: 2009-09-08



















editorial

VIVÊNCIAS DA SEXUALIDADE, AFETOS E RELAÇÕES DE INTIMIDADE (O caso das pessoas com deficiência apoiadas pelas IPSS)

Como todas as outras, a pessoa com deficiência deve poder aceder, querendo, a uma expressão e vivência da sexualidade que contribua para a sua saúde física e psicológica e para o seu sentido de realização pessoal. A CNIS...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Que as IPSS celebrem a sério o Natal
Já as avenidas e ruas das nossas cidades, vilas e aldeias se adornaram com lâmpadas de várias cores que desenham figuras alusivas à época natalícia, tornando as...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Adolf Ratzka, a poliomielite e a vida independente
Os mais novos não conhecerão, e por isso não temerão, a poliomelite, mas os da minha geração conhecem-na. Tivemos vizinhos, conhecidos e amigos que viveram toda a...