HELOÍSA PERISTA, INVESTIGADORA DO CESIS

O Estado deve ser um dos pilares da sustentabilidade do Terceiro Sector

Heloísa Perista é socióloga e presidente do Centro de Estudos para a Intervenção Social (CESIS), com sede em Lisboa. Investigadora sénior desta organização, fundada em Janeiro de 1992, tem trabalhado sobretudo nas questões relacionadas com a igualdade de género, da conciliação do trabalho com a família, do envelhecimento, da imigração e das empresas sociais.

Neste último tema, Heloísa Perista esteve envolvida em diversos projectos de investigação promovidos pela rede europeia de pesquisa sobre empresas sociais, EMES (Émergence dês Entreprises Sociales en Europe), no âmbito da União Europeia. A EMES apareceu em 1996, quando um conjunto de investigadores/as dos então 15 Estados-membros se associaram, tendo em vista a compreensão das características e das potencialidades deste novo tipo de empresa. A rede é coordenada cientificamente pelo belga Jacques Defourny, do Centro Económico e Social e composta por oito membros: Alemanha. Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia e Portugal. O nosso país é um dos que pertencem à coordenação técnica, e faz-se representar pelo CESIS, através de Heloísa Perista.

Analisando o caso português, segundo diversos relatórios publicados pela EMES, verifica-se nas últimas três décadas o país registou um aumento considerável do número de projectos sociais, principalmente a nível de desenvolvimento local e comunitário, combate ao desemprego, apoio a grupos desfavorecidos, desde idosos aos portadores de deficiência, pobres, sem-abrigo, toxicodependentes, etc. Simultaneamente, foi desenvolvido um crescente número de iniciativas tendo objectivos essencialmente sociais. Concluiu-se que os projectos devem associar a eficácia social à eficiência económica, qualquer que seja a sua forma legal ou institucional (cooperativas, associações, empresas privadas, instituições de solidariedade social).

SOLIDARIEDADE – Como é que iniciou a sua investigação no âmbito das empresas sociais?
HELOÍSA PERISTA
- Começou precisamente no âmbito de um projecto que foi desenvolvido a nível europeu e que juntava pessoas ligadas à investigação e pessoas ligadas ao cooperativismo. Era um projecto coordenado pelo Prof. Jacques Defourny, presidente da rede EMES. Foi esse projecto que deu origem ao modelo conceptual e teórico que enquadra o conceito de empresa social na Europa. No âmbito da rede EMES tivemos oportunidade de participar noutros projectos, nomeadamente num que tinha como principal objectivo avaliar o impacto das empresas sociais enquanto instrumentos de luta contra a exclusão e de promoção da empregabilidade para públicos desfavorecidos.

Em que consistiu o estudo?
O nosso trabalho foi identificar, de acordo com os princípios enquadradores do conceito de empresa social, em cada país, uma tipologia de instituições que poderiam caber nesse conceito e dentro dessa tipologia escolhemos uma para estudar em profundidade. No caso português, escolhemos as empresas de inserção, fossem elas empresas promovidas por IPSS, Mutualidades ou Cooperativas. Um dos objectivos era analisar trajectórias de empregabilidade. Quisemos perceber até que ponto pessoas de baixo nível de qualificação e com dificuldades acrescidas de integração no mercado de trabalho, beneficiavam da passagem por processos de promoção de competências profissionais e pessoais. O trabalho consistiu na realização de questionários e de entrevistas dirigidas quer às pessoas que estavam à frente das empresas de inserção, quer às pessoas que estavam a ser abrangidas pelos postos de trabalho criados. Aquilo que constatamos, na altura, foi que as empresas de inserção enquanto tal se debatiam com dificuldades em termos da possibilidade da sua sobrevivência enquanto organização. Quando o estudo se desenvolveu estávamos na fase em que terminava aquele primeiro período de financiamento público ao qual as empresas se tinham candidatado e, portanto, havia muitas dúvidas por parte das entidades promotoras das empresas de inserção quanto à sua sustentabilidade ao longo do tempo. Do ponto de vista das pessoas que eram abrangidas por essas empresas de inserção, os resultados a que chegamos eram tendencialmente positivos. O facto de terem passado pelas empresas e de terem tido formação e estágio e mesmo não lhes estando garantido no imediato a obtenção de emprego no mercado normal de emprego, as pessoas avaliavam muito positivamente a sua passagem pela empresa de inserção, sobretudo do ponto de vista da auto-estima e da relação com o trabalho.

O que é considerado a nível cientifico uma empresa social?
Do ponto de vista da definição que foi consensualizada no âmbito da Rede EMES e que depois acabou por ser adoptada pela Comissão Europeia, a questão chave está na combinação entre dimensões de natureza económico-financeira com dimensões de natureza social. Se é uma empresa tem que ter preocupações de sustentabilidade, de geração de recursos próprios quanto possível, ou seja, tem que haver um conjunto de procedimentos económico-financeiros que permitam a caracterização daquela organização como empresa. Por outro lado, estamos a falar de empresas que têm que associar a esta dimensão financeiro-económica um conjunto de preocupações sociais, que passam por um tratamento diferente do que se designa por lucro, ou seja, tem que haver preocupações de reinvestimento na actividade dos excedentes que são gerados. Além disso, a empresa tem que ter preocupações particulares ao nível da promoção da empregabilidade de pessoas com situações mais vulneráveis do ponto de vista do emprego.

Na década de 90 Portugal desconhecia as empresas sociais. Esta situação alterou-se entretanto?
De facto o que se constatou nestes primeiros projectos foi que, em Portugal, o termo era desconhecido e mesmo quando era proposto havia alguma reacção por parte das uniões representativas do chamado terceiro sector, em relação ao receio que havia que uma IPSS pudesse ser confundida com uma empresa. Noutros países, nomeadamente, na Bélgica ou na Itália este termo foi muito mais pacífico na sua proposta e aceitação. Por exemplo, na Itália são sobretudo as cooperativas que têm uma expressão mais forte e não houve este tipo de reacção. Em Portugal, por parte do movimento corporativo nunca houve dificuldade de aceitação do termo, essas dificuldades surgiram sobretudo com a União das IPSS. Julgo que actualmente esse tipo de receios estarão mais ultrapassados e já se ouve com mais frequência os próprios dirigentes da economia solidária a utilizarem o conceito de empresa social, na medida em que o próprio conceito tem um grande ênfase na dimensão social.

Essa maior dificuldade de aceitação deve-se ao conhecido conservadorismo português?
Julgo que tem mais haver com a nosso modelo de desenvolvimento e com o facto de em Portugal esta, como outras áreas, terem tido um desenvolvimento mais recente do que noutros congéneres europeus. O desenvolvimento deste tipo de movimentos e de iniciativas tem 30 anos e temos que considerar que isso nos coloca sempre numa situação diferente de países onde estas etapas foram percorridas há mais tempo. Por exemplo, a Itália com base no movimento corporativo, o Reino Unido com organizações de base comunitária, por exemplo associações de moradores, a Bélgica onde as cooperativas tem um desenvolvimento mais elevado, a França onde as mutualidades são muito fortes. Há diferentes exemplos que podem ser considerados pela Europa fora que revelam uma situação de maior maturidade do sector do que aquela que se regista entre nós.

Que tipo de empresas sociais é que existem e quais as que foram estudadas?
De acordo com os critérios da rede EMES, consideramos que em Portugal poderiam ser consideradas do ponto de vista jurídico três grandes tipos de empresas sociais: as empresas de inserção, as cooperativas de solidariedade social, aquelas que mais se aproximavam do conceito, e, ainda, os sistemas que, na altura, se designavam por emprego protegido dirigidos a pessoas com deficiência. No fundo, para serem empresas a organização tem que prosseguir uma actividade económica, tem que haver produção de bens ou serviços, esse é um critério fundamental para poder ser considerado como empresa de inserção. Assim sendo, deixa de fora muitas das nossas associações de desenvolvimento local ou outro tipo de fenómenos associativos que não têm esta componente directa de produção quer seja de bens ou de serviços.

No seu entender, de que forma é que as IPSS podem garantir a sua sobrevivência? Poderá passar por uma cada vez mais acentuada empresarialização da sua actividade?
Eu não falaria de “empresarialização”, porque isso seria ir ao encontro dos tais receios que as pessoas expressavam em relação ao termo. O que eu acho, é que de uma forma ou de outra as IPSS, tal como qualquer outra entidade deste sector, têm de ser capazes de garantir recursos que contribuam para a sua sustentabilidade. O que também me parece, é que o Estado e o Estado Português em particular, atendendo ao peso que o sector particular não lucrativo assume em relação à prestação de serviços sociais que não são assumidos pelo Estado, mas que, ao abrigo da contratualização, têm sido prestados pelas instituições sociais, acho perfeitamente legítimo continuar a pensar que o Estado relativamente ao financiamento dos serviços que são prestados não possa ser desresponsabilizado. Há aqui um processo de delegação de uma parte das competências que seriam do Estado na sociedade civil organizada, pelo que este não pode demitir-se dessa função e tem que continuar a ser um suporte.

Mas o principal suporte da sustentabilidade das IPSS?
Não digo o principal, mas tem que ser um dos suportes. Desde que esse terceiro sector assegure a prestação de serviços ou a produção de bens que sejam complementares à protecção social garantida pelo próprio Estado, acho que este deve ser um dos pilares da sustentabilidade.

Se existisse uma proliferação das chamadas empresas sociais, julga que poderia gerar-se uma espécie de economia paralela que fosse o motor de financiamento da economia solidária?
São experiências que têm sido feitas. Já desde há muito tempo, há associações e cooperativas que tentam criar fontes de financiamento. Por exemplo, gerir uma bomba de gasolina como forma de reforçar a obtenção de recursos que pudessem depois ajudar a manter em funcionamento uma série de serviços de natureza social ou quaisquer outras iniciativas que pudessem ir no mesmo sentido. Acho que é perfeitamente legítimo que isso possa acontecer.

Não existiria o perigo de transformar os dirigentes em gestores de uma economia social, havendo uma diluição da parte solidária?
Tudo depende dos objectivos da organização. Se a organização tem objectivos de carácter predominantemente sócio-caritativo, acho que as preocupações têm que ser outras. Se a organização associa a esses fins outros, como a prestação de serviços à comunidade, a gestão de equipamentos sociais, a promoção de empresas sociais, então julgo que não há qualquer risco ou qualquer problema em se confundirem papéis. Acho mesmo que estas organizações carecem cada vez mais de uma gestão profissionalizada, carecem em absoluto de uma profissionalização quer ao nível dos cargos de gestão, quer ao nível do pessoal ao serviço. Aliás, esta é uma das questões que se tem colocado nos últimos anos, a de qualificação efectiva dos serviços, e tem havido um esforço nesse sentido. O risco pode estar em não haver uma profissionalização dos serviços que se prestam e da respectiva gestão.

Como é que caracteriza o perfil de emprego do empresário social em Portugal?
Do estudo que fizemos, uma das dificuldades que existia tinha a ver precisamente com a obrigação legal que as empresas sociais tinham em garantir recursos próprios, em se implementarem com facilidade no mercado para a venda dos seus produtos ou serviços. Este tipo de exigências, que eram impostas pelo próprio quadro legal, bem como o perfil das pessoas que as empresas de inserção podiam abranger, ou seja, pessoas com um perfil caracterizado por uma ou várias dimensões de vulnerabilidade social e ao nível do emprego, tornava mais difícil criar sistemas produtivos que fossem suficientemente competitivos no mercado. Quando se fez uma análise e uma comparação entre os vários países envolvidos no projecto, esta foi uma das conclusões que a nível europeu era identificada em relação ao caso português: a de haver alguma dificuldade de compatibilização entre a necessidade da sustentabilidade, da competitividade no mercado e o perfil dos trabalhadores abrangidos.

Existem vozes que defendem que as empresas sociais são ou podem tornar-se em concorrência desleal em relação às outras empresas que não beneficiam de determinadas regalias inerentes ao terceiro sector?
Não me parece. Por exemplo, para ter uma empresa de inserção são impostos requisitos que não são fáceis de gerir ou de compatibilizar. Em termos de mercado pode haver essa reacção, mas não me parece problemático.

Falando agora de responsabilidade social das empresas, como é que analisa o tecido empresarial português no que se refere a essa matéria?
Pelo menos o termo é conhecido. Ao nível das práticas efectivas acho que se tem avançado alguma coisa, mas na generalidade das empresas há ainda um caminho longo a ser percorrido. Tem havido a constituição de normas de responsabilidade social e o CESIS faz parte de uma comissão que está a regulamentar a parte da norma que se refere às questões de conciliação do trabalho com a família. O que se verifica é que há algumas empresas que neste momento podem ser consideradas quase como empresas bandeira, que são aquelas que de facto já têm práticas de responsabilidade social efectivas consolidadas e com provas dadas e há muitas outras em que esse caminho ainda está por percorrer. No final do ano passado, foi criada a RSO.pt que é uma rede no âmbito da responsabilidade social das organizações, que congrega empresas e um conjunto de outras entidades, entre os quais o CESIS, e pessoas a título individual. Dela fazem já parte mais de 100 organizações e um dos objectivos desta rede é o de promover uma maior consciência social das empresas e das organizações empregadoras em geral, numa lógica de responsabilidade social e integrando as diferentes dimensões da responsabilidade social. Desde as mais conhecidas como o ambiente e de outras que, até agora, têm merecido menos atenção, como sejam, as de igualdade entre mulheres e homens, e as de conciliação do trabalho com a família. Há muita coisa que aparentemente está conquistada e que, por exemplo, numa situação de crise social agravada como a que estamos a viver, corre o risco de se perder. Faz todo o sentido continuar a apostar em matéria de promoção dos direitos sociais.

Neste quadro de crise social nacional e mundial, as empresas sociais, pela sua identidade, assumem um papel importante, diferente no contexto de mercado?
Atendendo à dimensão social mais acentuada podem ter um papel ainda mais evidente como amortecedoras dos efeitos da crise. Aquilo que se tem verificado com a vaga de encerramentos de empresas, de despedimentos, de aumento do desemprego é que há cada vez mais grupos da população cujo acesso ao emprego está a ser negado. Este tipo de empresas poderiam ser uma forma de reintegração destas pessoas no mercado de trabalho. A questão está em termos da sua própria capacidade e solidez enquanto empresa, para ser capaz de assumir esse papel de uma forma efectiva sem que isso possa pôr em risco a sua própria sobrevivência.

Por Milene Câmara (texto e foto)

 

Data de introdução: 2009-09-13



















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