Na sequência da apresentação do Orçamento de Estado no Parlamento e das negociações que o Governo tem levado a cabo com o PSD e o CDS, para que o Orçamento passe, o Ministro das Finanças veio a público anunciar um profundo recuo no programa de obras públicas que ainda há escassos dias constituía, na retórica governamental, um dos principais instrumentos de combate à crise.
Invoca-se agora um estudo de um professor da Universidade do Minho – estudo decerto estimável, tanto como os outros que concluíram o inverso -, que considera escassa ou nula a rentabilidade futura do TGV entre Lisboa e o Porto e entre Porto e Vigo, para deixar cair essas anunciadas linhas, mantendo apenas a de Lisboa a Madrid.
Garante-se desta forma aos habitantes da capital espanhola uma amena vilegiatura nas praias da Linha do Estoril – razão apresentada para a obra pelo Ministro das Obras Públicas, em momento menos inspirado.
Além de virem às praias da Linha frequentadas pelo seu Rei enquanto jovem, poderão ainda os madrilenos vir assim comodamente de comboio visitar os terrenos, os prédios e as empresas, os olivais e laranjais que têm comprado por cá e que representam a substituição contemporânea do domínio espanhol do tempo dos Filipes, durante a União Ibérica, de 1580 a 1640.
Mesmo o Cristiano Ronaldo poderá vir matar saudades à pátria e beber na fonte as homenagens dos devotos – umas vezes de comboio, outras de Ferrari.
Para além das linhas de Grande Velocidade, veio o Ministro das Finanças anunciar igualmente que o Governo suspenderá todos os processos relativos a novas concessões rodoviárias – isto é, não haverá novas auto-estradas.
Não me parece mal esta súbita descoberta pelo Governo de que os grandes investimentos públicos custam dinheiro – e que dinheiro é justamente o que nos falta.
E de que aumentam o endividamento perante o exterior, problema que o Presidente da República tem considerado como o mais preocupante da nossa vida colectiva – para esta e para as próximas gerações.
É que, quanto às matérias-primas que seria necessário importar para levar a cabo essas obras de encher o olho, quem as vender há-de querer que lhas paguem.
E os bancos que financiarem tais grandes investimentos quererão receber no tempo contratado capital e juros.
2 – Em toda esta mudança de cenário e de prioridades, há uma dúvida, uma perplexidade, que teima em ficar.
Ainda há 3 meses decorreu uma acesa disputa eleitoral para a Assembleia da República e toda a campanha – pelo menos entre os dois partidos candidatos à vitória, o PS e o PSD – girou em volta de dois temas principais: a “asfixia democrática” e os investimentos públicos.
Todos se recordarão de que o PS defendia o investimento público como um dos meios para sair da crise e para relançar a economia, acoimando os defensores da pausa nesse programa de investimentos – à cabeça visível, a Drª Manuela Ferreira Leite; à invisível, o Presidente da República – de rendição liberal e conservadora aos valores do mercado.
(Valores a que o Governo do PS estivera igualmente rendido até à véspera …)
Ainda há poucos dias, o Primeiro-Ministro não deixou de lembrar, numa dessas cerimónias cosmopolitas que juntam, várias vezes por ano, os líderes mundiais, desta vez a propósito das formas de combater a crise internacional em que estamos atolados, “o regresso do velho e bom Estado”.
Estado de cujos méritos o PS andava tão esquecido.
Bastou o défice subir para os 9,3% para toda essa retórica se esfumar e o Governo vir a público, sem corar, defender que esses investimentos, que há uma semana considerava essenciais, são afinal impraticáveis, pelo endividamento a que conduzem e pelos capitais que exigiriam – e que não há.
(Embora se perceba mal - se foi o Governo a querer que o défice fosse o que foi, e não um engano, como disse o Primeiro-Ministro -, essa recente bravata parisiense sobre a ressurreição do Keynes. Ou foi tudo programado pelo Governo – e não se explica esta reviravolta nas políticas … Ou foi a surpresa que levou à mudança. O que não pode ter sido é não ter havido surpresa e haver mudança por causa da surpresa).
Enfim, 3 meses após as eleições, o Governo apropria-se e faz seus os argumentos e as posições defendidas pela Drª Manuela Ferreira Leite na campanha eleitoral - argumentos derrotados, com ela, pelo voto dos portugueses.
E nada sequer estremece …
Para a perplexidade ser completa, só falta vir agora o Governo dar também razão à oposição quanto às acusações de asfixia democrática.
3 – Fica-me a pena de se abandonar a linha do Porto a Vigo.
Tenho para mim que só à minha conta a linha seria sustentável, tanto me puxa o pé – e a alma – para as praias e as terras da Galiza.
E tanto demora hoje o comboio a percorrer os 140 quilómetros que distanciam as duas cidades do Eixo Atlântico …!
É como se ainda persistisse a fronteira, a separar os povos irmãos da Galiza e do Norte de Portugal.
Já no que diz respeito à ligação de Lisboa ao Porto em TGV, estou em dar razão à suspensão do projecto.
Claro que foi uma coincidência diabólica vir o Governo informar-nos da suspensão das ligações do Porto a Vigo e a Lisboa e da sua exclusão do Orçamento na exacta semana em que o mesmíssimo Orçamento consagrava, para 2010, uma diminuição do investimento do PIDDAC no distrito do Porto em 84% e um aumento do mesmo investimento em Lisboa de 27%.
Reforçando a convicção, certamente provinciana, de que a capital do ex-Império é uma espécie de buraco negro, absorvendo toda a matéria em volta.
Mas o certo é que, quem viaja no Alfa Pendular, pode ver num painel informativo que se encontra nos topos de cada carruagem que, em várias ocasiões, o comboio circula a cerca de 200 quilómetros por hora – o que daria, se essa velocidade fosse constante, para ir do Porto a Lisboa em hora e meia.
Dizem-me que tal é impossível, pela razão de, em vários passos da linha, nomeadamente em certas curvas e junto de alguns pontões, o traçado comportar o risco de o movimento pendular do comboio, a velocidades mais elevadas, poder fazer as carruagens saltar dos carris – descarrilar, para usar uma linguagem mais ferroviária – ou roçar pelas guardas dos pontões – e descarrilar do mesmo modo.
O movimento pendular não admite mais do que um limitado índice de oscilação, para manter a aerodinâmica e o equilíbrio.
É como o Governo na gestão da maioria relativa.
Ora se alia aos partidos da esquerda parlamentar, em questões de costumes, procurando os valores do progressismo onde este não se encontra – e o pêndulo adorna perigosamente para um lado.
Ora se alia aos partidos da direita, no que toca aos interesses económicos e às leis do mercado, como agora no Orçamento de Estado – e, nesses casos, o pêndulo oscila para o outro lado.
O risco que se corre é como o risco do Alfa Pendular, se os movimentos de oscilação forem muito bruscos e pronunciados – é o risco de a maioria saltar dos carris.
Henrique Rodrigues – Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2010-02-06